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TransEditoriando... Chegamos ao número 10! Nascida a caminho do Fórum Social Mundial de 2003, a revista GLOBAL/Brasil se transforma, privilegiando os debates entre os vários participantes da lista Universidade Nômade, em relação aos artigos autorais. Também abre um maior espaço para expressões estéticas diversificadas. Desenhos, fotos e performances se agenciam com os debates, produzindo uma fala-monstro que exalta a criação coletiva, em detrimento da assinatura individualizada de autores ou artistas. Produzir uma revista implica organizar um corpo de textos e imagens não apenas em diálogo, mas em devir – o que aparenta corpo revela-se como infinidade de moléculas sígnicas em movimento em direção a outras. Imagem torna-se texto, texto torna-se imagem. Nesta transformação sempre inacabada, dribla-se a tentação de hierarquizar as representações, tentação à qual o design ceder ou se opor. Assim nos vamos aproximando de um desenho expressivo – conjunção íntima de formas e conteúdos.

produção, distribuição

Produzir uma revista significa sobretudo ativar uma multiplicidade de colaboradores para esta produção textual e iconográfica, assim como para disseminála pelos territórios reais e virtuais. Todavia, se sobram cérebros para produzir, faltam braços para distribuir. Para muitos, a distribuição de uma revista ainda equivale a mera reprodução. Nos deparamos com os velhos sintomas de hierarquizações entre trabalho imaterial e trabalho material. Se ainda sobram mentes mas ainda faltam membros, quando, numa economia do conhecimento, teremos a produção, afinal, estreitamente ligada à circulação do que seja produzido?

ação política Percebemos aqui que produzir uma revista é ação política! Ora, em cultura de redes, a questão da "organização" é questão sensível. É verdade que mesmo em organização que se queira radicalmente democrática e trabalhe para a radicalização da democracia, o fantasma de alguma hierarquização dos corpos, físicos ou semióticos, persiste. Pensemos então em praticar outros conceitos e conceituar outras práticas. Surge o enxame, figura altamente desmaterializada que converge, dispersa e recombina para um novo impulso. Vislumbramos a produção e a distribuição da revista como um acontecimento instantâneo e imprevisível, ou como um microconstrutivismo persistente e resistente? É preciso continuar a experimentação, verificar continuamente se os novos conceitos correspondem efetivamente às realidades vivenciadas. Mais do que analisar, provocar o enxameamento. E praticá-lo na maior horizontalidade possível. Se, nesta prática, verificar-se que algumas estruturas sejam necessárias, que sejam flexíveis e temporárias. Que durem o tempo de sua intensidade.

transformação uma revista nômade!

Dentro de um contexto global de transformações do capitalismo – que aqui chamamos de capitalismo cognitivo –, e de um contexto local de um governo eleito democraticamente e de políticas públicas democratizantes que o atualizam continuamente, como os Pontos de Cultura, a circulação é produção! Distribuição em pontos de cultura, distribuição através de um portal de revistas alternativas e companheiras, distribuição através do Ministério da Cultura ou de outras entidades, distribuição através de site próprio ou de sites aliados é resistência frente aos monopólios midiáticos e é criar outros mundos possíveis. Cooperar é multiplicar nossa potência para além da concorrência mercadológica ou da centralização burocrática, numa expansão contínua, de modo a concretizar os desejos dos muitos.

Para isto, a GLOBAL se transforma e se nomadiza. Quer ser um corpo monstruoso, real e virtual (aguardem o site: www.revistaglobalbrasil.com.br), golem de barro e cyborg de chips, low e high tech – corpo impuro, atravessado por múltiplos conflitos e desejos. Como Luana, este corpo vai pra pista porque quer e assim, exibindo-se sem falsos pudores, está a caminho do Fórum Social Mundial de 2009. Editorial 1 GLOBAL


Para o Ministério da Cultura, é de suma importância estimular e difundir o debate público de todo e qualquer tema relevante que corresponda à sua área de atuação. Tanto assim, que desenvolveu uma série de ações destinadas a ampliar ao máximo não apenas o incentivo a esses debates, como o acesso ao seu conteúdo. A publicação dos debates é uma das ferramentas utilizadas para democratizar seu conteúdo. Por isso mesmo integra uma das linhas de política cultural levadas a cabo pelo Ministério. A Petrobras, maior empresa brasileira e maior patrocinadora das artes e da cultura em nosso país, apóia o Programa Cultura e Pensamento 2007, dando continuidade ao projeto iniciado em 2006. Também desta maneira reforçamos e confirmamos nossa parceria com o Ministério da Cultura. A missão primordial da nossa empresa, desde que ela foi criada, há pouco mais de meio século, é a de contribuir para o desenvolvimento do Brasil. Fizemos e fazemos isso aprimorando cada vez mais nossos produtos, expandindo nossas atividades para além das fronteiras brasileiras, dedicando especial atenção à pesquisa de tecnologia de ponta. E também apoiando iniciativas como esta, porque, afinal, um país que não se enriquece através do debate e da difusão de idéias jamais será um país desenvolvido.

Comitê Editorial Alexandre do Nascimento Alexandre Mendes André Barros Barbara Szaniecki Caio Márcio Silveira Ecio de Salles Ericson Pires Fábio Goveia Fábio Malini Francisco Guimarães Geo Britto Gerardo Silva Giuseppe Cocco Ivana Bentes Leonora Corsini Maria José Barbosa Patricia Fagundes Daros Pedro Cláudio Cunca Bocayuva Peter Pál Pelbart Rodrigo Guéron Ronald Duarte Tatiana Roque Conexões Globais Antonio Negri (Itália) Cesar Altamira (Argentina) Javier Toret (Espanha) Luca Casarini (Itália) Marco Bascetta (Itália) Michael Hardt (Estados Unidos) Nicolás Sguiglia (Espanha) Raul Sanchez (Espanha) Conselho Editorial Adriano Pilatti Alexandre Vogler Antonio Martins Bruno Cava Caia Fittipaldi Emanuele Landi Fabiane Borges Fernando Santoro Hermano Viana Jô Gondar Leonardo Palma Lorenzo Macagno Luis Andrade Luiz Camillo Osório Maria Elisa Pimentel Mauro Sá Rego Costa Paulo Henrique de Almeida Pepe Bertarelli Romano Simone Sampaio Suely Rolnik

Revisão dos Textos Fábio Goveia Fábio Malini Leonora Corsini Tradução dos Textos Geo Britto Gerardo Silva Leonora Corsini Produção e Design Do Lar Design Pesquisa de Imagem Ronald Duarte Capa de Pedro Stephan Jornalista responsável Fábio Goveia Participaram deste número / Textos Alexandre do Nascimento Antonio Martins Barbara Szaniecki Caia Fittipaldi Dalton Martins Eduardo Ferreira Fábio Goveia Fábio Malini Fernando Santoro Giuseppe Cocco Hernani Dimantas Maurício Siqueira Leonora Corsini Rodolfo Fonseca Rodrigo Guéron Rodrigo Nunes Raul Longo Raul Vinhas Sofia Zanforlin Participaram deste número / Imagens Aimberê Cesar Inês de Araújo Mauricio Ruiz Paulo Innocêncio Pedro Stephan Suely Farhi Wilton Montenegro GLOBAL Brasil é uma publicação da Rede Universidade Nômade global.al@terra.com.br GLOBAL Brasil é a edição brasileira associada ao GLOBAL PROJECT www.globalmagazine.org


N

brasil

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REDE

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(01) Editorial

Trânsitos (04) Desenho de Inês de Araújo (06) Debate “Mestiçagem e Racismo”: Alexandre do Nascimento / Caia Fittipaldi / Giuseppe Cocco / Leonora Corsini / Rodrigo Guéron / Raul Longo / Raul Vinhas (12) Morada das almas: uma viagem ao Meruri Eduardo Ferreira

(14) Conexões

Este Projeto é apoiado pelo Programa Cultura e Pensamento 2007 Conheça o acervo do Programa: www.cultura.gov.br/culturaepensamento Patrocínio

Debate “Biopolítica e Biopoder”: Antonio Martins / Barbara Szaniecki / Caia Fittipaldi / Fernando

Santoro / Giuseppe Cocco / Leonora Corsini / Rodrigo Guéron (21) Ensaio fotográfico de Pedro Stephan (25) Performance de Suely Farhi e Aimberê Cesar

LEI DE INCENTIVO À CULTURA

(29) Mais do mesmo preconceito Sofia Zanforlin

Caderno Brasil do Le Monde Diplomatique (30) Sociedade em rede Dalton Martins e Hernani Dimantas Nesta edição da GLOBAL, a continuidade da parceria com o CADERNO BRASIL do Le Monde Diplomatique, edição internet (www.diplo.org.br). O leitor encontrará na revista alguns dos conteúdos do site ou do Blog de sua Redação (http://diplo.wordpress.com).

Realização

Co-Realização

Universidade Nômade (31) Diálogo de falantes e mudos na mídia brasileira Fábio Goveia (32) Quem controla a internet em Vitória Fábio Malini (34) Debate “Enxame”: Barbara Szaniecki / Caia Fittipaldi / Fernando Santoro / Giuseppe Cocco / Maurício Siqueira / Rodrigo Nunes

Maquinações (44) A Cidade dos Catadores de Papel Rodolfo Fonseca (45) Ensaio fotográfico de Paulo Innocêncio

Os artigos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem necessariamente a opinião da revista.

Sumário 3 GLOBAL


GLOBAL 4 Tr창nsitos


Sem título, desenho de Inês de Araújo, 2007. Foto de Wilton Montenegro.

Trânsitos 5 GLOBAL


racism

mestiçagem From: Giuseppe Cocco To: Global/Brasil Sent: Thursday, April 12, 2007 10:07 AM Subject: [Editores_global] artigo de Nei Lopes

Ola recentemente, na lista, discutimos sobre Carnaval, Africa e a reposta dada pelo Nei Lopes. Nao acompanhei os detalhes. Hoje, artigo do Nei Lopes no Globo. Ai vai a tese. Os negros, escravos e ex-escravos, foram discriminados pela política de branqueamento de Imperio e Republica de favorecer os imigrantes europeus (com reconstrucao historica errada, pois cita uma lei de 1946 – que devia ser destinada a naturalizacao – quando Vargas bloqueou as imigracoes desde 1932! Essa tese, muito forte no movimento negro, eh longamente desmontada no livro que publiquei com Negri. Pois se trata apenas da mesma leitura do poder sobre o fenomeno da migracao. E pior: O problema eh que esse tipo de discurso eh a outra face do vitimizacao do "oprimido". Ou seja, os negros nao trabalhavam mais dos cafezais ou nas fabricas recem criadas porque eram discriminados....Nao ha, neste discurso, nenhuma potencia do lado dos negros, dos ex escravos, da dinamica da mesticagem. Enfim.... Ciao, Beppo From: Rodrigo Gueron To: Global/Brasil Sent: Thursday, April 12, 2007 11:07 AM Subject: Re: artigo de Nei Lopes Mas Giuseppe, você não acha que do ponto de vista do poder, todo o discurso que o país precisava de branquear e europeizar para ser "civilizado e desenvolvido"e o fato de nos últimos anos do império e primeiros da república se investir um bom dinheiro do orçamento brasileiro na imigração e nenhum numa política de promoção da cidadania dos negros é sim uma política racista? Ou seja, o projeto da república já nasceria racista... Abs, Guéron Date: Thu, 12 Apr 2007 20:19:28 To: Global/Brasil From: Giuseppe Cocco Mas Gueron, esse raciocinio eh aquele que tem, por tras, o discurso de que o escravo na fazenda estava melhor do que o o negro liberto desempregado! Eh exatamente o ponto de vista do poder e nao da constituicao da liberdade. Na constituicao da liberdade nao ha contradicao entre libertacao (conquistada) dos negros e chegada dos imigrantes europeus! Do ponto de vista da luta, da potencia, os negros eram mais livres do que os imigrantes. E os imigrantes eram tao maltratados que nao vinham mais e para traze-los era preciso pagar a viagem e dizer que iam na argentina e teriam acesso a terra. O resto eh ponto de vista do poder. Claro que, uma vez que os imigrantes conseguiam – inclusive economicamente – eram integrados mais rapidamente porque BRANCOS, pela sociedade racista. Mas Vargas fechou logo! Em 1932. Ciao Beppo GLOBAL 6 Trânsitos

From: Alexandre do Nascimento To: Global/Brasil Date: Thu, 12 Apr 2007 21:35:27 Subject: Re: [Editores_global] artigo de Nei Lopes

Olá Beppo e Gueron, A chamada política de branqueamento não tinha nada haver com beneficiar os imigrantes europeus. Tinha muito mais que ver com o projeto de substituição do trabalho escravo pelo chamado "trabalho livre" e com o racismo mesmo. E isso começou timidamente na segunda década do século 19 e já tinha como pano de fundo, do ponto de vista do Império, o racismo. De acordo com as teorias eugênicas e racistas da época, a miscigenação produzia tipos degenerados, o que pode ser uma das explicações possíveis para o fato que os imigrantes que ganhavam terra eram proibidos de ter escravos, por exemplo. Agora, a vida dos imigrantes europeus (sobretudo após a lei da Terra de 1850) não era fácil, eles já chegavam devendo (moradia, alimentação, etc.) e foram habitar as senzalas. Boa parte, senão a maioria, eram submetidos a trabalho escravo. No pós-abolição, os líderes da Frente Negra Brasileira (1931-1936) consideravam que os imigrantes tiravam oportunidades dos negros. Eram nacionalistas (e getulistas, por entender que a partir de 1930 houve aberturas para negros – meu avô tinha adoração por getúlio). Num de seus artigos no jornal A Voz da Raça, Arlindo Veiga, presidente da Frente Negra, chegou a escrever o seguinte: "O negro precisa entrar violenta e tenazmente na história do presente do Brasil, conquistar violentamente O SEU LUGAR na comunidade nacional, porque – desenganem-se! – ninguém lh'o dará por bem...e felizes de nós, ainda, quando o que devia ser nosso fica nas mãos de patrícios brancos e não vai parar nas de estrangeiros!". Naquela época eram comuns anúncios de jornal com a advertência "não se aceitam pessoas de cor" e a maioria dos trabalhadores da indústria eram imigrantes ou filhos de imigrantes. É possível que o movimento fizesse relação entre as duas coisas. Penso que o entendimento de boa parte do movimento negro hoje de que os imigrantes foram beneficiados seja fruto desse processo. Até hoje, os mais velhos insistem na estratégia de "pressionar o Estado Brasileiro" por leis e ações, o que não deixa de ser importante, mas insuficiente do ponto de vista do que o Beppo chama de Marcha da Liberdade. O que fazem os grupos culturais, os pré-vestibulares, os projetos de empreendedores negros e outros, parecem ser atualizações inovadoras da luta anti-racista, mas a maioria dos que falam em nome dos negros ainda é esse pessoal.

Alexandre


mo

From: Alexandre do Nascimento To: Global/Brasil Date: Thu, 12 Apr 2007 21:39:20 -0300 Subject: Re: [Editores_global] artigo de Nei Lopes

Getúlio criou a primeira lei de cotas no Brasil, a Lei dos 2/3, que determinava a obrigatoriedade de que 2/3 dos postos de trabalho fossem de brasileiros. A Frente Negra apoiou isso, mas depois descobriu que os negros continuaram com dificuldades de conseguir emprego, como é até hoje.

Alexandre

constituição da liberdade From: Giuseppe Cocco To: Global/Brasil Sent: Thursday, April 12, 2007 10:21 PM Subject: [Editores_global] contra o indentidarismo O fato é que o pessoal gosta mesmo de um pensamento binário! De um lado como do outro! Getúlio fez a primeira lei nacionalista. Os negros, se entrassem, seria na base do fato que a ideologia do racismo tinha mudado, não era mais aquela da escravidão, mas a de um novo povo, o povo mestiço de Gilberto Freyre. O setor do movimento negro que faz tal discurso sobre os imigrantes tem, pois, os seguintes problemas: 1) fala do racismo no Brasil como se aqui ele existisse do mesmo modo que nos Estados Unidos, o que não é verdade! e é um erro politico! 2) pega tudo que existe no Brasil depois (e antes) da escravidão como se fosse determinado pela lógica interna do poder 1 + 2 = 3 3) Essa vertente do movimento negro foi incapaz de mobilizar uma crítica social adequada ao modelo da democracia racial. Pior, tem um discurso (por simpático que seja) que é especular (a outra face da mesma moeda) ao discurso do poder. - Os negros foram libertos pela necessidade funcionalista de se criar o trabalho livre - Os imigrantes foram o instrumento da discriminação dos negros, que não encontravam assim trabalho, ou seja, os negros sem as possibilidades oferecidas pelo poder não são nada ! só oprimidos que precisam de reparações. Enfim, é esse raciocínio que fez com que setores consistentes do mvto negro norte americano se alinhassem ao mais obtuso antisemitismo. Ora, as consequências políticas são nefastas ... para os negros! O que afirma o movimento de libertação (a constituição da liberdade), a marcha da liberdade (os jovens negros e mestiços dos prés-vestibulares que querem entrar na universidade mas são resistentes às mobilizações propostas pelo movimento negro), é exatamente o contrário: - que sem a autonomia-potência dos negros, e dos índios, o Brasil não seria nem 10% do que é! - que os negros se libertaram sozinhos - que a libertação não tinha nada de funcional A libertação não constituiu nenhum exército industrial de reserva. Essa que é a anomalia. Anomalia da potência, da liberdade! É idiotice pensar que os fazendeiros não quisessem os negros como operários assalariados. Qual era o problema para eles? Voces acham que as condições de trabalho dos imigrantes nos cafezais eram boas? Por que os governos italiano e alemão chegaram a vetar a emigração para o Brasil? É estupidez abissal pensar que o fazendeiro se recusasse a lucrar sobre o trabalho livre dos negros porque esses eram inferiores. É como pensar que a escravidão era cultural e não um regime material, de TRABALHO COMPULSÓRIO. É como pensar que o racismo que a gente combate é o preconceito dos provincianos que não conhecem os outros: ora, quando a cor não permite inferiorizar, usa-se o passaporte, ou o sexo etc., para extorquir trabalho de graça! Foram os negros libertos que não quiseram mais voltar nos cafezais, e já estavam fora, fazendo outra coisa. É a libertação que obrigou os senhores a procurar outra mão de obra e, depois de décadas fazendo contrabando de africanos, acabaram descobrindo que era mais barato desviar os fluxos milionários de migrantes que iam da Europa para a América. Os mais numerosos, os italianos. Os imigrantes foram lá onde havia grana para trazê-los! Por que não foram branquear o Brasil inteiro? Por que não branquearam o pampa gaúcho e foram colocados no meio do mato da serra, onde não havia ninguém para branquear? Por isso, ao longo de algumas décadas, os negros eram mais livres do que os imigrantes. Dizer que no final do século XIX havia racismo no Brasil é dizer tudo e ... nada! Os negros e os mestiços conquistaram a liberdade já quando havia escravidão! Racismo é um eufemismo. Isso significa que a liberdade dependia deles! Liberdade que passava inclusive pela mestiçagem. O racismo no Brasil é uma construção pós-abolição! Isso é o que precisamos dizer. Antes da abolição, os negros nem existiam como sujeitos. O racismo é a modulacao da população que, teoricamente, tem os mesmo direitos e vai ser inferiorizada de outro modo. E isso foi feito com inteligência. Enquanto Vargas fechava as fronteiras (os imigrantes que chegaram foram chegando de maneira marginal depois disso), Freyre inventava - grande inovação - a democracia racial e construia as bases do povo que a nação procurava. Mas a crítica desse "povo" não pode ser reacionária, a construção de um mosaico de povos, porque seria ainda pior. A crítica dos prés é a critica de que quem quer misturar tudo de vez e não apenas os de baixo. É a luta da mestiçagem contra o cinza! O arco-iris contra o céu cinzento da nação! Ciao Beppo Trânsitos 7 GLOBAL


... miscigenação e From: Raul Vinhas Ribeiro To: Universidade Nomade Sent: Thursday, August 23, 2007 3:07 PM Subject: [Universidade_nomade] Miscigenação não leva à democracia racial, diz sociólogo

Miscigenação não leva à democracia racial, diz sociólogo Publicada em 23/08/2007 às 08h31m em http://oglobo.globo. com/ciencia/mat/2007/08/23/297387917.asp

De: Giuseppe Cocco Para: universidade_nomade Data: Thu, 23 Aug 2007 18:37:38 Assunto: Fwd: Re: [Universidade_nomade] Miscigenação não leva " à democracia racial, diz sociólogo" O artigo pode ser lido, na íntegra, em www.fflch.usp.br/sociologia/ temposocial_2/pdf/vol18n2/v18n2a11.pdf

From: Leonora Corsini To: universidade_nomade Sent: Saturday, August 25, 2007 12:07 PM Subject: [Universidade_nomade] Fwd: Re: Miscigenação não leva " à " democracia racial, diz sociólogo" "

Olá Beppo, eu já tinha lido. O texto tem o mérito de desmistificar a idéia de uma suposta democracia racial, e também de mostrar como a violência contra os negros opera por modulações. Mas achei problemático ele lamentar (pelo menos me pareceu assim) que a mestiçagem nao tenha produzido uma "homogeneizaçao". Acho que, ao pegar pelo negativo a mestiçagem, como se fosse uma politica feita de cima para baixo para ocultar o fato de que a democracia racial à brasileira é falsa, nunca existiu, ele deixa de lado a dimensão constituinte da mistura, do encontro, da diferença. Fiquei também com a impressão de que ele acredita que só tem democracia e justiça com a homogeneidade, com o reforço da identidade (de uma identidade de raiz). Mas ele não considera em nenhum momento nesse texto a possibilidade de a mestiçagem poder ser lida como linha de fuga, como resistência. O que voces acharam? Bjs, Leo

resistência linha de fuga

Data: 25/08/07 14:49 De: Caia Fittipaldi Para: universidade_nomade Assunto: Re: [Universidade_nomade] Fwd: Re: Miscigenação não leva " à " democrac...

Eu concordo com isso que a Leonora escreveu. Acho que é aí -- no que ela escreveu, sobre o que a incomodou nesse texto (e que também me incomodou) -- que está a via para entendermos, bem claramente, que há vários tipos de interpretação nesse negócio de interpretar a miscigenação (como, aliás, há vários tipos possíveis de interpreção para tudo, é claro). Acho que os Negristas trabalham para mudar o primeiro pressuposto, a premissa-zero da interpretação de tudo. Assim, pode acontecer que interpretações que pareçam semelhantes sejam semelhantes apenas na conclusão... mas essa semelhança será pouco significativa, se as interpretações não partirem da mesma premissa-zero. O xis da questão, em qquer interpretação é o interesse de quem interprete. Também aqui a força regente é O DESEJO (tema que a pragmática lingüística estuda até que bem; e ensina que, se se apaga o desejo nas construções lingüísticas, a frase "Que horas são?" passará a significar exatamente a mesma coisa, ela seja enunciada por um condenado ou seja ela enunciada pelo carrasco que o executará. E, nos dois casos, se se apagar o desejo, a frase significará TOTALMENTE nada. No caso que aqui se discute, interessa aos Negristas DEMONSTRAR A RESISTÊNCIA. Então... o mesmo fato (a miscigenação, que se constata na cara dos miscigenados, pela cor da pele) TEM DE SER interpretado de modo tal que EXPONHA, mostre, construa (no limite: que invente, sendo necessário) os pretos e índios como parceiros sexuais ativos (não como "vítimas", ou "objeto", ou "alvo"), dos brancos, nos contatos sexuais que geram os miscigenados. Só assim se consegue inverter a ganga todinha, porque assim, afinal, os resistentes têm, devolvida a eles, a sua potência original, que tb lhes é roubada em outros tipos de interpretação, regidos por outros desejos. Fato é que há um discurso favorável à miscigenação que até que já está implantado, no Brasil, mas está implantado à moda ongo-burra. Para esses, a miscigenação seria uma espécie de delírio sexo-nacional (bastante inspirado, acho eu, no romantismo europeu): aqui, tudo se misturou, tudo, tudo, foi uma orgia! Todo mundo fodendo todo mundo! Nem se deu bola pra diferenças cromáticas! Foi uma loucuuuuuuuuuuuuuuuuura! Bom. Até aí, morreu Neves. Mas essa interpretação (a da loucuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuura tropical) visa, exclusivamente, a demonstrar a loucuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuura da orgia sexual que miscigenou tudo, aqui, sob o sol tropical. É a Europa fria, chegada ao trópico quente e descrevendo-se, ela mesma, como liberta. Como se bastasse tomar sol na cabeça, pra 'liberar geral'. Por mim, tudo bem, em matéria de 'liberô geral', mas... cadê a resistência?! A resistência não foi vista ou, então, a resistência foi apagada. Daí em diante, pouca diferença faz que se demonstre, ou não se demonstre, que há ou que não há racismo no Brasil. Porque, haja ou não haja racismo, já não há resistência possível. 'Entregou-se' a potência para resistir, em troca de salvar-se... alguma teoria sociológica que vise a demonstrar... que há racismo no Brasil. Sim mas... e daí?! -- perguntam os resistentes, os quais, aliás, estão careeeeeeeeeeeeeeecas de saber que, sim, há racismo no Brasil. Muitas vezes, na minha vida, eu já preferi enfrentar o Bornhausen nu & cru, em pessoa, do que eu ter de enfrentar as sinuosidades dos discursos da ideologia ongo-sociológica. Em textos interessantes, então, a argumentação que vise a desconstruir o discurso-máscara (de classe? Eu, que sou do PCdoB, sempre acho que sim, mas estou aberta a negociações), a briga fica ainda mais difícil. (E nem sei se, aqui, consegui escrever coisa-com-coisa.) PS - Até 2ª feira, no mínimo, estou ATOLADA em trabalho-grana. Se eu sumir, não se preocupem. Caia. GLOBAL 8 Trânsitos


democracia De: Raul Longo Para: universidade_nomade@listas.rits.org.br Data: Sat, 25 Aug 2007 15:29:18 Assunto: Re: [Universidade_nomade] Fwd: Re: Miscigenação não leva " à " democracia racial, diz sociólogo" " Sem sequer pretender que minha opinião possa contribuir em alguma coisa para a discussão, mas pelo tema do assunto me ser recorrente, comento ter encontrado nesse enunciado abertura para diversas análises sobre a mestiçagem, e espero que o autor as tenha feito na íntegra do texto. Lerei, é claro, mas no momento não tenho tempo para fazê-lo. No entanto, quero colocar brevemente uma impressão que tenho há décadas, sobre a questão do mulato no ponto de vista do branco, também inspirada em observação do Sartre num texto de qual não mais lembro o título. Naquele ensaio Sartre apresenta como hipótese para o racismo entre negros e bancos, uma atração e conseqüente inveja do branco pelo negro, e vice-versa, por considerar que também haja particularidades atrativas nos brancos, invejadas pelos negros. Ao elogiar a beleza das feições indígenas da criança de uma família oriunda de Manaus ou Belém, provoquei grande indisposição em seus pais, visivelmente descendentes de índios, ainda que bem sucedidos financeiramente e moradores em bairro de classe média de São Paulo. Estranha situação, radicalizada no relato de um amigo que conhece alguém que fez o processo de embranquecimento de pele (como Michel Jackson e Ângela Maria), e sempre que há sol busca a praia para se bronzear. Percebo que o racismo brasileiro se difere do norte-americano porque nos E.U. o negro é considerado ameaça por ser negro, ser outra raça a ocupar o espaço considerado de exclusividade branca. No Brasil a ameaça sentida pelo branco racista, me parece ser outra e mais complexa, até porque mais inconsciente e ainda mais interiorizada nos indivíduos. Em discussão com um racista, ele me desafia perguntando se me casaria com sua empregada, negra. Devolvi perguntando que diferença haveria entre casar com uma empregada branca, ou com uma patroa negra. A resposta foi imediata, a diferença estaria em ter filhos mulatos. O racismo aos negros no Brasil muitas vezes demonstra não se basear fundamentalmente nas diferenças físicas das etnias (acrescidas de suas conseqüências), mas o racismo ao mulato me parece conter muito de um receio ou insegurança do branco brasileiro, em não ser tão exclusivamente branco quanto pretende. E nesse caso, o mulato é a confirmação dessa possibilidade ou realidade negada. Muito estranhava, quando menino, a inexistência de documentação fotográfica de uma de minhas bisavós, embora por todos sempre carinhosamente lembrada. Havia fotos dos demais avós e bisavós, e se podia situar as cidades e regiões italianas de suas procedências. Mas especialmente daquela personagem nunca vira nenhuma foto, e quando me ocorreu perguntar sua origem, a resposta foi lacônica: portuguesa. Lembro de ter questionado a introdução daquela portuguesa-brasileira entre os recém vindos de Itália, e de terem reafirmado sua origem lusitana, descrevendo-lhe um buço como comprovação. Quando enfim encontro, em casa de outros parentes, uma rara fotografia daquela bisavó paterna, constato se tratar de uma evidente mulata. Talvez pela qualidade da foto antiga, não pude reconhecer-lhe o buço, mas também não qualquer outra característica que indicasse alguma outra influência genética que não fosse a afro-descendência, veementemente rechaçada sempre que, desde aí, a comentava, compreendendo enfim, alguns detalhes físicos da família, como o acentuado ondular dos cabelos. E o que mais me intrigava é que além de sempre lembrada com particular saudosismo, ressaltava-se nesses relatos o ter sido uma liderança familiar, inclusive na formação religiosa daqueles italianos que, mesmo vindo católicos, ou anarquistas anti-clericais e anti-religiosos, através dela se tornaram espíritas: kardecistas alguns, mas a maioria umbandistas, como meu pai que incorporava diversas entidades africanas ou de escravos, embora sempre reagisse intempestivamente a cada vez que eu me declarava mulato. Confirmando Sartre, quando da fundação do Ilê Ayê, em Salvador, na qual participei trabalhando com Aninha e Chico, seus idealizadores, fui impedido de desfilar pelo Chico, alegando que se ao menos eu fosse mulato, poderiam aceitar. Não é fácil ser mulato num país em que a maioria não se assume como tal. Sendo a maioria dos brasileiros mulatos, não é fácil ser brasileiro no Brasil. Concordando com Sartre, os brancos brasileiros podem invejar Pelé, invejar a criatividade, a disponibilidade para o viver. Ser atraídos pela culinária, valorizarem a feijoada, o samba. Enaltecer diversos elementos negros, reconhecendo-os como símbolos nacionais. Muitas vezes o fazem mantendo um distanciamento pseudamente douto, como se fossem recém-chegados, turistas complacentes, capazes de valorizar a cultura local. Há aí também um racismo embutido, que se disfarça nesse enaltecimento, mas revela-se exatamente quando não se assume como sua própria cultura. Muitas vezes o racismo está visível, porém disfarçado, no próprio enaltecer das qualidades dos negros, sem assumir-se como da mesma cultura que molda gerações de Vinícius de Moraes, Adoniram Barbosas e Chico Buarques. Somos mulatos desde as "Memórias de um Sargento de Milícias", somos mulatos desde quando dançávamos maxixe, e não samba. Já éramos mulatos quando chegaram japoneses e italianos que aqui também se 'mulataram'. Mulatos de todas as origens, de todas as Europas, Arábias, Ásias e sertões de Américas. Observações, igualmente racistas, sobre "negros que se deram bem na vida", ou o "negro de alma branca", não deixam de transparecer algum reconhecimento, alguma aceitação ou complacência que não se estende ao "mulato que se deu bem na vida", nem a tentativas de se reconhecer no mulato, alguma parcela branca. Quando muito, se o trata por "neguinho metido a branco". O Estádio Edson Arantes do Nascimento existe há muito tempo. Mas o de Mané Garrincha, só será inaugurado este ano. Então o Ronaldo Sales me parece ter razão por um lado, mas pela mesma observação da Leonora estranhei o emprego do termo "homogenização" e pretendia encontrar melhor explicação na íntegra do texto, imaginando se referir a conformação econômicasocial. De toda forma, esse emprego da palavra pode mesmo provocar mal entendidos quando o assunto é a salutar e enriquecedora heterogênese étnica. Não agora que não tenho tempo, mas terei de ler essa íntegra, pois o comentário da Leonora também me deixou confuso, provavelmente por não ter compreendido a que ela se refere afirmando não se apresentar no texto "a possibilidade de a mestiçagem poder ser lida como linha de fuga". Mas lamentarei se o autor, conforme constatado pela Leo, não apontar em nós todos: mulatos, cafuzos, mamelucos, curibocas, caboclos; uma possibilidade de resistência. Pois concordo com o Arnaldo Carrilho quando aponta como solução para muitos de nossos problemas existenciais e nacionais, o assumirmos quem e o que indubitavelmente somos. Negando-nos em nossa realidade, nunca chegaremos a coisa alguma a não ser ridícula imitação do que nunca seremos. E tomara que encontre isso na íntegra no texto. Se não achar, quando tiver tempo de ler, volto aqui ao assunto, pois nos é sim inerente. Raul Longo Trânsitos 9 GLOBAL


vida mulata

From: Leonora Corsini To: universidade_nomade Sent: Saturday, August 25, 2007 6:00 PM Subject: Re: [Universidade_nomade]Fwd: Re: Miscigenação não leva " à " democracia racial, diz sociólogo" "

Raul, como voce nao leu o texto do Ronaldo Sales, apenas queria comentar essa questao da mestiçagem como linha de fuga. Bom, primeiro é preciso dizer que estou pensando em linha de fuga nos termos de Deleuze e Guattari, que se referem, com este conceito, aos vetores de desorganização ou de desterritorialização que apontam ao mesmo tempo para duas ações: fugir e fazer fugir. Então linha de fuga não supõe apenas a fuga, ir para fora de algum lugar (os negros deixando de ser negros, como Michael Jackson), mas a possibilidade de fazer fugir, de embaralhar códigos, de se abrir aos devires (por exemplo, a sua bisavó, já não dá mais para saber se era portuguesa, negra, mulata...). Os devires possuem uma relação privilegiada com a feminilidade (devirmulher), com a infância (devir-criança), ou com instâncias consideradas minoritárias (devir-judeu, devir-negro), isto porque possibilitam relações que “fazem fugir” uma situação constituída de dicotomias organizadas a partir de um estado de maioridade (homem-mulher, adulto-criança, branco-negro, branco-índio) definida pelo macho adulto branco. Acho interessante a sugestão de que o temor de ficar de fora dessas classificaçoes binárias (de que cor serão os filhos da empregada negra com o patrão branco? Ou vice-versa?) é uma explicação possível para rejeição inconsciente do mulato, ou da vida mulata (o poeta caribenho Edouard Glissant fala de uma “creolização” do mundo, uma idéia que acho genial...). Mas penso que a rejeição da mistura como um eventual “devir” branco do negro ou do índio seja uma contradição nos termos do conceito deleuziano. Autores multiculturalistas como Stuart Hall (identidades híbridas) tambem vêem a miscigenação positivamente, como estratégia de fuga. O S. Hall diz que (estou citando) no quadro de uma crescente fluidificação do panorama étnico e cultural no mundo que é muito antiga, vem desde os tempos coloniais e fica mais intensa com a globalização, o que acontece é uma reconfiguração estratégica das forças e relações sociais em todo o planeta que teve como efeito paradoxal a “proliferação subalterna da diferença”, “uma composição marcada por muitas diferenças locais as quais o eixo vertical do poder é obrigado a considerar”. Continuando com Hall: “não se trata da forma binária de diferença entre o que é absolutamente o mesmo e o que é absolutamente 'Outro', mas de uma 'onda' de similaridades e diferenças, que recusa a divisão em oposições binárias fixas”. Uma consequência linguística desta onda seria, segundo Hall, a proliferação de novos significados para o termo black, que na Inglaterra passou a designar tanto as comunidades afro-caribenhas quanto os asiáticos que vivem no país. Em Império, Negri & Hardt tratam a miscigenação e o nomadismo da multidão como um movimento de resistência fundado na mobilidade e na circulação que “faz fugir” tudo o que está atrelado a um nação, a uma identidade, a uma etnia ou a um povo, sendo, portanto, inteiramente positiva. Citando: “O nomadismo e a miscigenaçao aparecem como figu-ras virtuosas, como práticas éticas primordiais no terreno do Império, que fazem ruir o espaço objetivo da globali-zação capitalista ou neoliberal”. Me desculpem por tantas citaçoes, é que esta discussao me empolga e eu queria explicar o que eu disse sobre o texto que, afinal, é pertinente, deve ser lido e debatido. Abraços, Leonora.

Sem título, desenho de Inês de Araújo, 2007. Foto de Wilton Montenegro.

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Data: 25/08/07 21:11 De: Raul Longo Para: universidade nomade Assunto: Re: [Universidade_nomade] Fwd: Re: Miscigenação não leva " à " democracia... Obrigado pela explicação, Leonora. Muito boa por me fazer compreender uma expressão que poderia vir a tomar em outro sentido; mas ainda melhor por me apontar novos paradigmas e óticas nas quais sequer havia pensado. Exagerei no meu afastamento para pôr pensamentos e escritos em ordem, e hoje, aqui pelo UN mesmo, vejo quanto fiquei defasado. De forma que suas citações também são bastante úteis, servindo-me como referências. Não posso, ou melhor, não quero mais fazer o mesmo caminho de antes quando lia tudo o que aparecesse. E tanto que tive de me afastar para coordenar até mesmos meus interesses. Há um problema sério nessa coisa de auto-didatismo que é a falta de critério. Então, aqui com os Nômades, vou pegando referências, mas tento me introduzir lentamente (na forma em que aconselhava Nietzsche) e vou descobrindo leituras preliminares, como o Néstor Canclini que tem um texto interessante sobre o que aqui conversamos. Especialmente há alguns parágrafos (nada longo demais) que posso procurar para você, caso não tenha lido Diferentes, Desiguais e Desconectados - Mapas da interculturalidade. No momento ainda tenho algumas coisas a resolver, que intercalo com a leitura das msgs, mas se não leu e lhe interessa, me avise que vasculho meus destaques no livro. Mas quero lhe relatar um ocorrido do último domingo que tem sua relação com o que agora conversamos. Além do privilégio de uma belíssima paisagem nas minhas janelas, usufruo também do luxo de domingos de samba bem em frente da minha casa, num barraco de pesca. O barraco é de sociedade entre um pescador e um dos melhores compositores daqui da Ilha. O Lima, daqui dos nômades, é amigo do Nelsão, um dos freqüentadores do barraco aos domingos, e também promotor de rodas de samba no vizinho bairro de Sto. Antonio de Lisboa, onde aos sábados se ensaia o Bloco Baiacu de Alguém. O barraco daqui do Sambaqui é do Lourenço, o pescador, e do Neco, o compositor. Freqüentadores nacionalmente famosos é o Yamandu Costa e a Ideli Salvati. Mas isso é só para ambientar, pois o que interessa no relato é que quem seja de música popular, brasileira ou estrangeira, que por ventura visite Florianópolis, vem ao Babaçu de Alguém ou ao rancho do Neco, onde se juntam gentes de classe média abaixo e de todas as raças e nacionalidades (apesar de uma população de 350 mil, Floripa talvez seja uma da mais cosmopolitas das capitais brasileiras). Pois no domingo passado, uma moça negra muito bonita sambava sozinha uma ou outra música. Sambava sozinha porque seu namorado, branco e de cintura dura, apenas assistia com cara-de-marido. No requebro da moça, tive certeza de ela ser carioca, mas a cara-de-marido do seu companheiro não me animava a certificar. E havia outra moça, também bonita, e essencialmente caucasiana, que se esforçava com pé-afrente pé-atrás, num arremedo de samba, muito destoante do da negra. Mas a negra não se soltava tanto quanto a loira. Talvez nem só pelo cara-de-marido, mas também pela levada das músicas que, por momentos, envereda por Miltons Nascimento, tangos, chorinhos, milongas, forrós, pois nem só de samba se vive nesse Sambaqui. Sem contar as indefectíveis seleções de Cartola, Nelson Cavaquinho, e outros não tão indicados aos requebros da moça, mais típicos de terreiro. Pois num momento, uma vizinha, que depois soube hospedar a moça caucasiana, cochicha alguma coisa no ouvido do Neco que anuncia termos ali uma visita alemã. E que a alemã iria cantar. Era a caucasiana. Os músicos olharam espantados. Deles, só quem sabe algo de música alemã é o sanfoneiro, e ainda assim conhece apenas as tradicionais marchas de festas de chopp. A moça cochichou algo com o do violão (Reizinho, grande violão!) e para nossa surpresa mandou uma seleção de excelentes sambas dignos dos mais experimentados passistas. Já no início o cara-de-marido foi esquecido, e aquilo virou um espetáculo de improviso, com uma beleza branca cantando para uma beleza negra sambar com toda sua desenvoltura. Toda a assistência se mexia, mas o espetáculo era tão catártico que nem os mais animados e insistentes dançarinos em qualquer ritmo, preferencialmente o samba de terreiro, se animou a entrar na roda, das duas, pois evidentemente a branca cantava para a negra, que exclusivamente para ela sambava e, confirmei depois, nunca tinham se visto antes. A última música da seqüência foi a "Morena de Angola que leva o chocalho na canela" e ficou difícil se definir se a branca é que mexia com a negra, ou se a negra é quem mexia com a branca. Mas, enfim, me deu oportunidade de confirmar, era mesmo carioca. A alemã não é de nenhuma cidade famosa e já não lembro mais o nome. É a primeira vez que vem ao Brasil, mas já estudara português em seu país, motivada exatamente pelo encanto que lhe despertou a música afro-brasileira. Veja você o que, de fato, é globalização. Desculpe ter te ocupado com esse relato, mas é que no meu modo empírico de experimentar as coisas, ele se relaciona com o que me explicou e agradeço. Raul Longo

“creolização” do mundo Trânsitos 11 GLOBAL


Sem título, desenho de Inês de Araújo, 2007. Foto de Wilton Montenegro.

Morada das almas: uma viagem ao Meruri Eduardo Ferreira

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Há dez anos atrás conheci Roberto Victório, um músico carioca que na época dividia comigo e mais sete companheiros o cargo de conselheiro de estado de cultura, era o momento da implantação do Conselho Estadual de Cultura de Mato Grosso, um marco na política cultural do Estado. Uma cumplicidade logo se estabeleceu e passamos a conviver semanalmente nas reuniões ordinárias do conselho. Formávamos uma trindade: Roberto, que é músico erudito, compositor, maestro, pensador e pesquisador, o escritor Ricardo

Guilherme Dicke e eu. Sempre dividíamos as caronas e nesses percursos muitos sonhos foram sonhados, muitos projetos idealizados, de uma forma ou de outra queríamos comungar nossas experiências e realizar obras artísticas. Na época, Roberto me falou de um projeto de pesquisa etnomusical que desenvolveu para concluir o doutorado na UFRJ e que resultou em uma composição musical erudita e contemporânea de nome Aroe Jari, em língua Bororo, que significa: Morada das Almas. Um


lugar que, na interpretação simbólica dos Bororos, transcende a fisicalidade e representa o mundo imaterial, o mundo espiritual para onde todos deverão retornar segundo a concepção deles. Fizemos planos de realizar um documentário sobre a pesquisa e a música, mais que planos, tentamos fazer e sempre esbarrávamos em dificuldades para conseguir recursos. Dez longos anos se passaram, agora conseguimos dar visibilidade ao projeto e estamos muito próximos de realizá-lo. Fomos até a aldeia do Merure, que fica a 400 km de Cuiabá, perto de Barra do Garças, pedir a autorização dos bororos para iniciarmos processo de pré-produção do documentário. Ao chegar na aldeia levei um choque ao me deparar com as profundas mudanças que ocorreram e continuam a acontecer no comportamento da comunidade. De imediato, percebemos mudanças na arquitetura da aldeia, as antigas ocas foram substituídas por pequenas casas padronizadas, tipo essas casas do sistema de habitação popular, organizadas em formato quadrado, quebrando a disposição circular de antes que tinha toda uma significação hierárquica importante na estruturação das relações entre os diversos clãs, sub-clãs e hipo-clãs. Observei também que havia muitos sacos de plástico jogados próximos às casas, embalagens de diversos produtos de consumo doméstico, resultando num ambiente que precisa urgentemente de uma ação para organizar a destinação do lixo. Fui logo sendo apresentado ao Agostinho, um bororo bastante efeminado, que, inicialmente, me deixou em dúvida se era uma moça ou um rapaz. Diretor do Museu da Etnia Bororo, ele é extremamente respeitado por todos na aldeia e vem realizando um grande trabalho na organização do vasto acervo que possuem, em áudio, vídeo, fotografias, muitos documentos e publicações diversas. Eles mantêm uma biblioteca com muita coisa publicada sobre a etnia, que é das mais estudadas. Conheci um outro jovem bororo, o Paulinho, cameraman, videomaker, que logo quis nos mostrar seu primeiro filme, um documentário sobre o ritual funerário. Um olhar de dentro pra fora, um cara que conhece as minúcias do lugar. O ritual funerário que dura de dois a três meses é o tema da música do Roberto Victório, que é o nosso tema do documentário e assim, surpresos com a coincidência, fomos ver o filme. Ele leva jeito, o filme é razoável. Paulinho fez oficinas de vídeo, tem uma boa mão,

muito firme para operar a câmera e um bom olho, com o tempo deverá crescer, pois está bastante empolgado. Pelo fato de ser membro da aldeia pôde entrar e registrar determinadas partes do ritual que ninguém de fora poderia. As mulheres e as crianças não-iniciadas também são proibidas de presenciar alguns momentos do ritual. Me levaram pra conhecer a sala multimídia e ao chegarmos lá um grupo de adolescentes bororos estava dançando ao som eletrônico do batidão e do funk. Outro garoto que conheci operando um computador é completamente fascinado por tecnologia. Quer acesso à internet, quer estudar, quer tocar, ele e Paulinho estão montando uma banda. Querem tocar pop rock e eletrônico misturado com música indígena. Paulinho é fã de Legião Urbana. A etnia Bororo sempre se destacou pela sensibilidade e complexidade de seus ritos, além de ter uma organização social rigorosa que reflete uma cultura rica e organizada, com uma noção espantosa do espaço e suas significações. Naquela época Roberto estava encerrando um longo ciclo onde pesquisou, catalogou, criou notações para definir os percursos da música bororo, ou seja, revelar, escrever, descrever, tornar legível. Se embrenhou na selva de uma música que considerou extremamente rica, criativa e condutora dos rituais mais importantes da etnia. Dessa experiência compôs a peça musical composta de três movimentos: Aroe Jari, Egnoware e Aroe Maiwu. O que aconteceu com a Nação Bororo foi um autêntico genocídio. Eles ocupavam uma faixa de terra que ía da Bolívia até o Triângulo Mineiro (MG). Foram usurpados, roubados, quase exterminados. Felizmente sobreviveram e estão recuperando seus ritos mais importantes, passando seus conhecimentos ancestrais para as novas gerações que estão se adaptando aos novos tempos tecnológicos. Estão resistindo hoje com uma população de cerca de 1.500 índios. Com uma cultura riquíssima e complexa. A última vez que fui numa aldeia, se não me engano, foi em 1992, 93, não me lembro bem, mas não importa, foi numa aldeia Xavante, inimigos ancestrais dos bororos, eles não se toleram, já foram protagonistas de muitas batalhas, não se entendem. Na reunião que fizemos com as lideranças bororos no Meruri para conseguir autorização para o documentário, o bororo Agostinho falou que essa rusga com os xavantes já vem de tempos remotos, que eu não conseguiria

entender. Ouvi dizer que os xavantes roubavam mulheres bororos, sempre provocavam brigas, não podiam se cruzar que era briga certa. Os bororos consideram os xavantes excessivamente materialistas, pouco dados a espiritualidade. Essa última aldeia que visitei nos anos 90, perto de Nova Xavantina, região do médio Araguaia, era bem típica ainda, apesar de estarem levantando uma construção de alvenaria, uma escola, o que já me causou um certo preconceito. Confesso que não consegui ver com os olhos livres as mudanças que ocorriam no interior das comunidades indígenas. Minha visão era preconceituosa, queria ver os índios como vieram ao mundo, eu não percebia que o mundo dos brancos chegou para eles e impôs com todos os seus apelos, o desejo de consumo e as facilidades que a tecnologia trás para o ser humano. Não! Índio deve ficar em suas ocas, isolados! Mas como, se já os contaminamos? Levamos a doença e o remédio, a cachaça, o açúcar, a cárie, a diarréia, o vírus. Quem nunca visitou uma aldeia e mantém uma idéia do índio como um ser isolado, primitivo, idílico, puro, não tem a mínima noção do que vem ocorrendo. As transformações são muito profundas e eles, no Meruri, estão desenvolvendo uma nova consciência sobre o valor da memória. Agostinho criou uma obra representando as relações clânicas da aldeia, uma instalação, reproduzindo a estrutura clânica definida pela disposição espacial circular da aldeia, uma bela montagem, que faturou um prêmio cultural nacional na Petrobras, o Cultura Viva. Eles têm consciência hoje dessa importância e da importância de desenvolverem outras formas de representação para manter vivo um conhecimento ancestral que é importante como fator de auto-valorização e conservação de sua cultura. Segundo Roberto Victório constatou em sua pesquisa, existe uma estrutura mítica dual ditada pelos "antepassados imemoriais Baitagogo/ Akaruio Boroge como personificação da alma Bororo perdida no tempo e posteriormente corporificada pelos antepassados Bakoro Kudu/ Akaruio Bokodori, como os primeiros chefes transmissores dos ensinamentos no plano material." Ao sairmos da aldeia no retorno para Cuiabá, não pude deixar de pensar: índio gosta de tecnologia, índio quer tecnologia. As aldeias nunca mais serão as mesmas. O céu estava lindo naquele momento, derramava estrelas pelas bordas. http://www.overmundo.com.br/overblog/moradadas-almas-uma-viagem-ao-meruri-1

Trânsitos 13 GLOBAL


biopoder e biopo Data: 30/09/07 02:01 Para: Universidade Nômade De: Caia Fittipaldi

Seguinte: sábado de garoa e frio em Sampa -- e eu estou super infeliz (mas nada grave. Estou em processo de infelicidade pedagógica, digamos). Então fui pra cama e levei uma pilha de coisas pra ler.

Então, numa das coisas que estou lendo, eu li: "Tempo de vida e tempo de trabalho se misturam em uma circulação que constitui o novo espaço produtivo, ao passo que a organização da produção se tornou política, gestão de um poder que se exerce sobre as populações entendidas enquanto espécie: um biopoder." Tá tudo perfeito, aqui.

MAS não é possível que usemos as palavras "biopoder" e "biopolítica" para designar conceitos que são TOTALMENTE antípodas. Essas duas palavras são construídas pelo mesmo princípio de construção (um adjetivo-prefixal, que modifica um substantivo-raiz). Mas, em "biopoder" o poder (substantivo-raiz) toma a vida 'para o mal', para destruí-la; e em "bipolítica" a política (substantivo-raiz) NÃO TOMA a vida para destruí-la -- e a palavra designa um processo que é praticamente o oposto de "destruir a vida". PORTANTO, essas duas palavras NÃO PODEM SER CONSTRUÍDAS pelo mesmo princípio de construção. O problema é terminológico e gravíssimo: se ficarmos com "biopoder" para designar o poder que destrói a vida, não poderemos mais usar "biopolítica" para designar a política que 'recupera' ou que 'defende' ou que visa a defender (não a destruir) a vida. (Espero que eu tenha sido clara, pq a coisa é MUITO GRAVE. Se ninguém entendeu nada, me digam, que eu tentarei ser mais clara. Se eu é que não entendi nada, plíz, me expliquem.)

. . . p oder sobre a vida, po tência da vida. . . Date: Sun, 30 Sep 2007 09:17:47 To: Universidade Nômade From: Barbara Szaniecki

From: Fernando Santoro To: Universidade Nômade Date: Sun, 30 Sep 2007 01:53:43

Oi Caia, sem tempo pra escrever, coloco aqui o link para um artigo que pode ajudar. Pour une redefinition du concept de biopolitique do Lazzarato. bj, Barbara http://multitudes.samizdat.net/spip.php? article426&var_recherche=Maurizio%20 Lazzarato

digamos que essa não é exatamente a minha praia, mas vou dar meu pitaco: Os conceitos de "biopoder" e "biopolítica" são idéias foucaultianas para designar uma modalidade de ação política que se faz sobre os corpos vivos e as populações: disciplina dos comportamentos, dos gêneros, das etnias, da natalidade, da mortalidade etc. Por si sós os conceitos não têm valor para o bem ou para o mal – mas claro, no contexto, sempre indicarão valores políticos e morais.

Querida Caia,

O Estado contemporâneo exerce um biopoder – um poder sobre a vida das populações. A política com relação a essas ações sobre a vida das populações é uma biopolítica, seja da parte do Estado, dos indivíduos ou da multidão.

Agora, falo para a lingüista: o prefixo "bio", nesses casos, indica o objeto sobre o qual os substantivos (os "sujeitos") atuam. Não sei se estou correto, mas entendo assim. Quem puder que explique melhor. Abraços, Maguila

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lítica: questões Date: Sun, 30 Sep 2007 09:19:30 From: Giuseppe Cocco To: universidade nômade

de terminologia...

Oi Caia, entao, eh seguinte. Como o Maguila acaba de colocar, esses sao termos foucaultianos. Soh que Foucault usava indistintamente dos dois, sem dar a nenhum dois dois valor positivo ou negativo. Quem faz a diferenca eh o Negri (e atras dele um monte de gente), distinguindo o biopoder como poder sobre a vida (a vida das populacoes entendidas como especie) e a biopolitica, sendo essa a potencia da vida! Na realidade do dia a dia, essas duas dimensoes sao misturadas e eh o conflito que a separa. Ou seja, Negri aplica ao pensamento do Foucault a distincao spinoziana entre poder e potencia. Eh isso. Nao ha nenhum problema: as duas dimensoes estao dentro da mesma dinamica e podem sim ser construídas do mesmo principio: isso nao significa que nao estejam - entre elas - em conflito mortal. Eh como dizer que na era da subsuncao real nao ha mais fora... isso torna o conflito ainda mais central e letal (para o poder) do que antes. Espero voce esteja mais feliz hoje! Ciao, Beppo.

Data: 30/09/07 14:00 De: Caia Fittipaldi Para: Universidade Nômade

Barbara, Cocco, Fernando, queridos, bom-dia!

Estou lendo tuuuuuuuuuuuuuuuudo. Já estou quase DES-infeliz. Só a multidão salva. A luta continua. Tudo bem. Vou ver se explico melhor o meu problema, que nada tem a ver com os conceitos - até acho que, pelo menos no geralzão, eu já estou começando a entender melhor esses conceitos (que são-eram TOTALMENTE desconhecidos, pra mim). O meu problema só tem a ver com essas palavras. PRIMEIRO DE TUDO, há uma coisa que os lingüistas NUNCA esquecem (mas todo mundo sempre esquece): -- NENHUM conceito/lexia/palavra pode ser nem construído nem entendido 'em si'. "Tudo na língua são oposições" -- como Saussure ensinou. Para entender um conceito/lexia/palavra é INDISPENSÁVEL ver qual é o par opositivo dentro do qual ele está sendo construído (não se pode pensar em dia, sem pensar em noite; não se pode pensar em vogal, sem pensar em consoante; não se pode pensar em vazio, sem pensar em cheio, não se pode definir o som /s/ [que é fonema surdo] se não se definir, simultaneamente, o o som /z/ [que é fonema sonoro] e por aí vai. E NADA PODE SER PENSADO FORA DE UM "par opositivo".) Então, para entender o significado de "biopoder" e "biopolítica" é INDISPENSÁVEL reconstituir os pares opositivos nos quais esses conceitos estão pensados. Grosso modo, pode-se dizer que "bio" opõe-se a "morte"; "poder" opõe-se a "nãopoder"; e "política" opõe-se a "não-política". Então, isto posto, vamvê se me explico melhor. (ATENÇÃO: eu não estou defendendo a minha idéia. Eu só estou PRECISANDO entender esse negócio aí.) Sinto aí -- nas palavras "biopoder" e "biopolítica", não nos conceitos -- alguma coisa parecida com o que se sente diante de palavras como "eco-consciência" e "eco-safadeza" (num exemplo que estou inventando agora). Tb aí, o adjetivo aparece como prefixo = um prefixo qualificativo. O problema é que, sempre que se juntam (com hífen ou sem, tanto faz) um substantivo e um adjetivo (com o que se cria um NOVO substantivo que, não havendo hífen, é chamado de "sintagma nominal"), o que acontece é que, tanto o adjetivo MODIFICA o substantivo, quanto o substantivo MODIFICA o adjetivo. No exemplo que eu dei aqui, o adjetivo "eco" NÃO SIGNIFICA a mesma coisa nos dois casos: em eco-consciência (como em biopolítica) os traços 'positivos' (no sentido de que se os deseja reforçar) contagiam o prefixo-adjetivo e lhe dão também traços 'positivos'. E tb vale o contrário: em eco-safadeza (como em biopoder) os traços 'negativos' (no sentido de que se os deseja DETONAR) também contamina o prefixo-adjetivo e lhe dão traços 'negativos'. Com o que (QUEIRA DEUS!) se demonstra que o prefixo-adjetivo "bio" (como o prefixo "eco") NÃO SIGNIFICA EXATAMENTE A MESMA COISA em "biopoder" e em "biopolítica". É aí, precisamente, está a minha dificuldade, não com os conceitos, mas com essas palavras. O meu caso é que, se "bio" ganha conteúdos 'positivos' (no sentido de que se os deseja reforçar) em "biopolítica" (=os valores da vida 'melhoram' os valores da política)... ele TAMBÉM ganha conteúdos 'positivos' em "biopoder". E vale a inversa: se o substantivo "poder" tem conteúdo 'negativos' em "biopoder"... (no sentido de que se os deseja DETONAR, porque nós NÃO QUEREMOS ASSUMIR O PODER) ele TAMBÉM ganha conteúdos 'negativos' em "biopolítica" (E AÍ, EXATAMENTE, é que eu não entendo mais nada). PêqmPê. Dado que É TOTALMENTE impossível impedir que alguém 'construa' na própria cabeça o par "biopolítica"/"biopoder" (sobretudo porque as duas palavras sempre aparecem juntas nos nossos discursos)... há aí -- quando essas duas palavras ocorrem no MESMO discurso -- uma, digamos, zona nebulosa, há indefinições, aí. Há aí algo que não está discutido. Por causa disso, afinal (EU TÔ ACHANDO), os DOIS conceitos perdem potência explicativa. O artigo do Lazzarato é uma maravilha. Conexões 15 GLOBAL


Aqui vai uma amostrinha, traduzida pra ajudar os listeiros que não lêem francês: "O cinema, e em termos mais gerais a produção cultural que no fordismo começa a adquirir um caráter de massa, transforma radicalmente os modos de percepção coletiva: em particular, a diferença entre autor e público tende a perder seu traço unilateral. "Ela é só funcional, pode variar de um caso para outro. O leitor, a todo momento, pode se tornar escritor [autor]" (BENJAMIN Walter, “L'oeuvre d'art à l'époque de sa reproduction mécanisée”, in Écrits français, Gallimard, 1991, p. 158). A técnica do filme, como a técnica do esporte, suscita a participação do público como "connaisseur", como "expert". O públicomassa, esse novo "expert" que quer intervir como "autor", passa a ser o sujeito adequado, seja na recepção seja na produção das obras. Essa transformação dos públicos em "expert", Benjamin teve o mérito de associar às transformações do trabalho e ao desaparecimento da separação entre trabalho intelectual e trabalho manual, como o destaca, de modo paradigmático, a produção cinematrográfica. A constituição do operário coletivo e dos públicos coletivos são as duas faces de um mesmo processo: o operário enfrenta a linha de montagem, e os públicos, de modo semelhante, enfrentam a linha de imagens encadeadas. O trabalho e a percepção são ambos orientados por dispositivos maquínicos." (LAZZARATO, Maurizio, set. 1997, "Pour une redéfinition du concept de "Biopolitique". Besitos. Caia

From: Fernando Santoro To: Universidade Nômade Date: Sun, 30 Sep 2007 16:30:50

Data: 30/09/07 15:07 De: Caia Fittipaldi Para: Universidade Nômade

transformações do trabalho, transformações do público

Fernando, querido:

Sobre [da msg abaixo, do Fernando]: "o prefixo "bio-", nesses casos, indica o objeto sobre o qual os substantivos (os "sujeitos") atuam. Acho que, aí, não se cogita de "ação". Nos substantivos só se cogita de "ser X" e de "não ser Y". O substantivo é "o nome". E o nome "funda a coisa como ente". O substantivo cria os entes para o pensamento. O adjetivo ACRESCENTA atributos aos entes que o substantivo, de fato, cria, antes, em estado de 'só ser'. Antes disso, diz Hjelmslev, tudo é difuso e impensável, "na massa amorfa dos significados e dos significantes não recortados e impensáveis." O substantivo só existe no plano ontológico. Não se cogita de ação, até aí. A ação NUNCA está propriamente contida, a rigor, no substantivo. Sem ação, não há "atuação" (e, portanto, não há agente). O que se poderia dizer, eu acho, pra dizer o que vc quer dizer, é que o prefixo "bio" RECORTA, do mundo, um ente que se visa a designar, nomear: não qquer política, mas a específica biopolítica. Em termos mais lógico-matemáticos, podese dizer que "biopolítica" é um subconjunto do conjunto "política". E sempre, até aqui, estamos no campo da DESIGNAÇÃO, não, ainda, na ação. Até aqui, o único actante ativo é QUEM DESIGNA, quer dizer, eu, vc, Foucault, Aristóteles, qquer um [risos, risos, pq essa, agora, foi o máximo da onipotência!]. "Biopolítica", então, designa, digamos, uma determinada política que alguém faz. Esse "alguém que faz" é o actante ativo da política (que pode ter, é claro, actantes passivos). Pode-se dizer (de fato, eu acho que se deve dizer e, até, que já tá dito), que o actante ativo da biopolítica é a multidão, o monstro. Tudo bem. Mas... comé que fica esse negócio todo, no caso de "biopoder"? Quem é o actante ativo do biopoder? Se é a multidão, é preciso dizer isso bem claramente. CONTUDO, se "O Estado contemporâneo exerce um biopoder - um poder sobre a vida das populações", como vc escreveu... o actante ativo do biopoder NÃO É o mesmo actante ativo da biopolítica. PORTANTO, não há homologia entre os significados de "biopoder" e "biopolítica" (dado que não há homologia entre os actantes ativos pressupostos nos dois conceitos). PORTANTO, esses conceitos não podem ter (como ainda tem) significantes homólogos, quero dizer: os dois conceitos NÃO PODEM ser construídos pelos mesmos princípios de construção [de palavras]. (PêqmePê! Vcs estão entendendo?)

disciplina e controle dos

corpos

Oi Caia, gostei do problema que você levantou (ainda que pareça papo de lingüista) mas não sei se entendi muito bem. Vamos lá, tentemos esclarecer a coisa para nós mesmos. Na minha singela explicação, eu disse que "bio" era um objeto, e não uma qualidade. Quer dizer: eu leio esse bio (porque a minha praia é o grego e não o conceituário do Negri) não como adjetivo, mas como substantivo também. Assim bio+poder tanto como bio+política são substantivos compostos de dois substantivos. Não leio biopoder como poder vital (que me parece que é o que te assusta) mas como poder sobre a vida. Realmente "poder" e "política" não são os agentes, estes são: o Estado, os indivíduos, a multidão. Se o conceito de "poder" segue a leitura espinosiana, como explicou o Beppo, a oposição estrita não é biopoder X biopolítica mas seria: biopoder X biopotência. Agora traduzindo para nosso uso prático: como o poder é exercido pelo Estado, o agente do biopoder é o Estado (e outras forças poderosas, não potentes). Como a multidão não tem poder mas potência, ela faz biopolítica sem exercer o biopoder. Ela faz ações políticas que tem como objeto a vida, que incidem sobre a vida. E como não poderiam deixar de ser, também são ações vitais, mas não creio que seja isso o que diz "biopolítica". Eu ainda leio a coisa pelo Foucault: biopolítica é uma política sobre os cuidados e disciplinas exercidos sobre o corpo e a vida das populações, que constitui uma construção e controle dos sujeitos e não apenas o exercício tradicional de governo do Estado. Agora uma pergunta ao Beppo: mas o Estado quando exerce seu poder sobre a vida também não está inserido numa biopolítica? Realmente os conceitos sozinhos podem ter sua ambigüidade, mas acho que no contexto em que são usados essa ambigüidade se desfaz. Agradeço aos que trouxerem mais clareza ao problema. Um abraço, Fernando GLOBAL 16 Conexões


vida zoológica: Date: Sun, 30 Sep 2007 18:27:12 -0300 From: Giuseppe Cocco To: Universidade Nômade Oi Caia correndo...

zoé.

Nem li o Maguila que deve ter te dado indicacoes sobre os gregos. De toda maneira, Bio, Bios, o pessoal usa para falar de formas de vida, de vida politica (por oposicao a Zoe, vida biologica, animal...). Os gregos (artisoteles) descreviam as diferentes formas de vida juntando bio e algo mais, por exemplo, diziam que a forma de vida do intelectual puro (bios theoretikon – que o Maguila me corrija, pois nao estudei grego) como algo parecido com o Bio-xenoi, a forma de vida dos estrangeiros....

Entao, nao vejo mesmo esse problema que voce encontra no desdobramento de biopoder em biopolitica. Nos dois casos, se trata do governo da vida das populacoes (da vida e nao da morte). No biopoder, o principio de governo eh externo as dinamicas de producao-reproducao da vida. Na biopolitica, ao contrario, o governo eh a mesma coisa que essas dinamicas. Ora, nos sabemos que tudo isso esta na realidade misturado... e que sao as lutas que operam a clivagem etica: que nem na questao da moral e da etica. Bjos, Beppo.

From: Caia Fittipaldi To: Universidade Nômade Date: Mon, 1 Oct 2007 00:12:50

Ô iéz. MUITO OBRIGADA A TODOS!

From: Fernando Santoro To: Universidade Nômade Date: Sun, 30 Sep 2007 23:40:12

Salve Beppo! O que eu falei antes vai nessa linha que vc explicou abaixo. Eu nem tinha entrado na filosofia dos gregos, mas já que vc deu a deixa, eu aproveito.

Num contexto totalmente diferente, Aristóteles, na Ética a Nicômaco, definiu três modelos de vida, segundo a compreensão de felicidade : a vida hedonística, a vida política, a vida teorética. Nesses casos, vida é um substantivo e os outros termos é que são adjetivos. E vida – bios, como disse o Beppo, não é a vida animal do homem e dos seres vivos (que erroneamente nós chamamos de "biológica" – devia ser "zoológica") e que se contrapõe à morte, mas sim vida humana, existencial - vida orientada por um sentido. As três vidas que Aristóteles examina são as três opções existenciais de dar sentido à própria vida. Eu particularmente tenho uma interpretação integrante: a existência mais feliz reúne prazer, atividade social e intelectual. Mas para a discussão da Caia, as únicas coisas que importam aqui é que "bios" não é usada como adjetivo (não significa "vital") e não se contrapõe à morte.

Quem tem umas idéias bem interessantes sobre isso é a Hannah Arendt, uma grande filósofa política, que cunhou um conceito muito interessante para compreender o homem e a política, que é o conceito de natalidade. Acho que traz elementos interessantes para a discussão da biopolítica e não duvido que tenha de algum modo inspirado Foucault, que inspirou Negri, que... Para aprofundamentos: ARENDT, Hannah, A condição humana, Rio de Janeiro, Forense, 1995. Abraços, Fernando

vida política:

Já entendi, pelo menos, o grosso da coisa. Um amigo meu, médico, com quem conversei hoje, me mandou um artigo interessante, em que se explica bem esse negócio (por Hannah Arendt, exatamente como o Fernando lembrou aí). Mas, como o artigo cita Agamben e não cita Negri/Hardt/Cocco, eu achei melhor não distribuir, pra não complicar demais um negócio que já é difícil.

Há, sim, eu continuo achando, um problema terminológico (=da construção e uso dos termos, não do conceito propriamente dito), pq, se eu-euzinha LI esse "bio" de biopolítica e biopoder em oposição a "morte" e não li em oposição ao que no homem é animal (=o que, no homem, não é nem teórico nem político, à Aristóteles)... tá na cara que muita gente lerá como eu li (errado).

Então, é claro que falta explicar mais prôs grandes públicos (mais completamente, mais cuidadosamente) pra começar, a HISTÓRIA dos termos, a (digamos) "fortuna crítica" dos termos biopoder e biopolítica, de Foucault, por Negri/Hardt, até nós, hoje.

A discussão dos "substantivos" fica suspensa. Ela tb pode ser útil (eu acho) e, afinal, o meu "incômodo" nasceu sob uma equação "de lingüista" -- que é o meu jeito. Ali tb há alguma coisa pra resolver melhor, mas não é urgente. E se eu puder pensar nesses negócios de substantivos DEPOIS de eu ter entendido melhor os conceitos, aquela discussão tb melhorará.

Tá tudo beleza. Sobrevivi ao fim-de-semana e já tô praticamente feliz. Eu sou feliz porque eu luto (não é o contrário). Tô lendo. Beijos mil. Caia

bios. Data: 01/10/07 14:09 De: Giuseppe Cocco Para: Universidade Nômade Oi Caia, essa classe como evento é aquela do Thompson! É a acontecimento! Imagine hoje, se a classe existisse independentemente da luta, seria um desastre... Quanto à língua, por que alguém aqui não mobiliza o Bakhtin??? bjos Beppo Conexões 17 GLOBAL


Data: 02/10/07 To: Universidade Nômade From: Barbara Szaniecki Oi Caia e todos, queria retomar a discussão sobre biopolitica x biopoder. Mesmo sem tê-la acompanhado integralmente, achei ótima a tua questão. Do mesmo modo que, em determinado momento, Negri achou necessário, politicamente necessário, estabelecer uma diferença entre biopoder e biopolítica, é possivel que hoje seja necessário, politicamente necessário, mexer na forma/morfologia desses conceitos que chegam a nós. Muitas vezes me pareceu que a lingüística através de suas preocupações formais (terminológicas, morfológicas, gramaticais, fonéticas, e não sei mais) ficava presa a um passado, sem levar em conta os processos históricos que atravessam a língua. Já neste caso, a tua preocupação me pareceu uma possibilidade de inovação. Claro, como esses conceitos a Foucault 'pertencem' (digamos assim), é sempre bom explicar, contextualizar a modificação, a inovação. Acredito que Foucault não se queixaria da 'infidelidade', muito pelo contrário, talvez agradecesse! Sobre o texto do Lazzarato que indiquei, não creio que exista tradução. Por fim, mal conheço Bergson, mas certamente esse virtual aí nada tem a ver com o 'virtual' dos computadores. abs, Barbara

tempo-potência Data: 02/10/07 00:34 De: Caia Fittipaldi Para: Universidade Nômade Barbara, oi!

Muito obrigada! O artigo é excelente, claríssimo. Está traduzido em algum lugar? Onde? Mas anoto que, sim, tô achando que Bergson tem muito a ver com isso tudo -de bio-política e biopoder. Por exemplo, no parágrafo abaixo, esse tempo-potência é IGUALZINHO ao "virtual" de Bergson (que nada tem a ver com o "virtual" de hoje, dos computadores):

"Il est donc de la plus grande importance que le biopolitique ne soit pas assimilé à la ‘reproduction de l'espèce’ et à la reproduction de la société de ‘plein emploi’. Le concept de vie doit être redéfini en fonction d'un tempspuissance, c'est-à-dire en fonction d'une capacité à réorienter les mécanismes du welfare contre l'État et contre le travail. des agencements de subjectivité qui correspondent à ce temps-puissance." E, em nota:

“Quand nous parlons d'une vie a-organique qui doit se substituer à la conception d'une vie assimilée aux ‘processus biologiques d'ensemble’, nous nous référons à la nécessité d'inventer” [Deleuze, sobre "o virtual" de Bergson]: “la notion de virtuel cesse d'être vague, indéterminée ... C'est que le ‘virtuel’ se distingue du ‘possible’ au moins de deux points de vue. D'un certain point de vue, en effet, le possible est le contraire du réel, il s'oppose au réel, mais ce qui est tout différent, le virtuel s'oppose à l'actuel. Nous devons prendre au sérieux cette terminologie: le possible n'a pas de réalité (bien qu'il puisse avoir une actualité); inversement le virtuel n'est pas actuel, mais possède en tant que tel une réalité. Là encore, la meilleure formule pour définir les états de virtualité serait celle de Proust: "réels sans être actuels, idéaux sans être abstraits".

Data: 02/10/07 23:43 De: Leonora Corsini Para: Universidade Nômade Anexo(s): Do biopoder a biopolitica_Lazzarato.doc (110160 bytes) Entrevista a Judith Revel sobre Biopoder e biopolítica.doc (59642 bytes) BodyPart.txt (187 bytes)

o possível,

o virtual

Oi Caia, se puder contribuir, tenho uma tradução para o espanhol desse texto do Lazzarato (é o que saiu na Multitudes), e tenho também uma entrevista da Judith Revel sobre o assunto (biopolitica como resistência). Nas últimas páginas de A vontade de saber (vol 1 da Historia da Sexualidade, p. 127-136), o próprio Foucault faz alguns esclarecimentos que, na minha opinião, vão na mesma direção desta leitura. Leonora

Data:03/10/07 00:41 De: Antonio Martins Para: Universidade Nômade

conceitos, slogans,

Gente ótima: Eu, que estou conhecendo há pouco a obra do Negri e vocês todos, adorei e aprendi com as explicações da Barbara, Beppo e Leonora, mas acho que elas não respondem a uma das questões centrais da Caia. Se queremos dialogar com a multidão sobre certos conceitos, não podemos construí-los partindo apenas de nossas estruturas mentais. Se damos a biopolítica e biopoder sinais tão opostos entre si, não é possível que as palavras usadas para designá-los tenham sentidos quase indistinguíveis. (Aliás, na atual conjuntura, talvez biopoder soe melhor...) Um conceito é, em certo aspecto, como um slogan: se é preciso indicar, junto com ele, uma referência bibliográfica, então ele é, como conceito, quase inútil... Abração do Antonio GLOBAL 18 Conexões


Data: 03/10/07 01:55 De: Caia Fittipaldi Para: Universidade Nômade

práxis filosofia

Leonora, você super ajuda. Mto. obrigada. O texto em francês já é traduzido do italiano. É excelente tradução, mas, em matéria de traduções, quanto mais melhor. Há tb um problema de notas, no texto em francês (há uma nota repetida e, portanto, falta uma nota. Ainda não abri o que vc mandou, mas é possível que dê pra acertar um pelo outro. Ótimo. Obrigadíssima, tb pelo texto da Judith Revel. Vou ler tudo. Eu sou assim mesmo: eu leio muito, parece que ao acaso. De repente, dá um clique e as coisas encaixam. Até hoje, pelo menos, até que têm encaixado, mais ou menos. O marxismo é uma filosofia da práxis. O marxismo NÃO É a prática de uma filosofagem. Então... é preciso fazer (qquer coisa) e doppo, filosofare. Nunca o contrário. Então tá tudo bem. Vamo que vamo. Fato é que, assim meio na louca, estou aprendendo tuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuudo sobre biopoder e biopolítica. Esse jeito que as coisas tomam, na lista, é a cara do modo como a multidão aprende. Só a luta ensina. Lerei tudo amanhã, pq, agora, estou chegando do show do Toots Thielmans com o Oscar Castro Neves. Foi lindo -embora, como disse o meu filho, quando eu disse onde ia: "esse negócio de gaita de boca, às vezes, aproxima-se do chato". Às vezes, aproxima-se, sim. Mas não hoje, por sorte. Em boa parte por causa de um puuuuuuuuuuuuuuuuuuuta pianista holandês, de um puuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuta baixista belga e, sim, do deslumbrante violão do Oscar Castro Neves (que estava emocionadíssimo). E, sim, sim, o show foi lindo. Toots T. está com 85 anos e totalmente animadíssimo. Na saída, encontramos Alaíde Costa (eu estava com a Eliete Negreiros, cantora e amiga deles todos) e dei-lhe um beijo reverente. Ela está meio velha, mas, tb, animadíssima (e Oscar Castro Neves a homenageia, no show). Encontramos tb o Zuza Homem de Mello, que sabe tuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuudo de canção brasileira, e contou que acaba de lançar um livro "meio autobiográfico", que tb fiquei com vontade de ler. Por hoje, é isso. Fora esses e mais alguns músicos e alunos de música, com cara de pobres, o teatro estava lotadíssimo de peruas encasacadas e senhores elegantíssimos e zilhões de carrões. Bjs. Caia

Data: 03/10/07 03:10 De: Caia Fittipaldi Para: universidade nomade

conceitos, termos,

Antonio, bem-vindo! Comento um pouco o que vc escreveu, pq concordo com algumas coisas, não com tudo o que vc escreveu. Concordo com o modo como vc coloca o 'meu' problema. Vc colocou com mta. clareza o q que eu quis dizer com o meu incômodo inicial: não é possível usar palavras tão semelhantes pra designar conceitos tão diferentes. Aqui estamos no chão, digamos, do problema. Foi um custo eu entender que "bio-", nessas palavras, não significa "vida" em oposição à morte, mas significa, quase, "vida humana, em sociedade e com linguagem e com mundo", no sentido de que "bio-" está construído em oposição a (1) zoo(=vida de bicho) e (2) à atividade de abstrair, generalizar e propor teorias. Trata-se aí de uma sutil e importantíssima diferença entre palavras gregas. Essas palavras têm complexa história na filosofia grega e, depois, têm OUTRA complexa história em português. Afinal, se diz "biologia" e "biografia", em português (e em zilhões de línguas). Em "biologia", o prefixo inclui traços semânticos associados à "vida animal"; e em "biografia" o mesmo prefixo NÃO INCLUI traços semânticos de vida animal e inclui a traços semânticos que NADA têm de "vida animal". Nessas duas palavras, que ocorrem com alta freqüência em português (e em zilhões de línguas), as diferenças estão superadas, mas não foram nem discutidas nem equacionadas. O negócio das palavras que se usam para CONCEITOS é complicado. Os lingüistas chamam essas palavras de "termos". Aos ouvidos dos lingüistas, a expressão "termo científico" é totalmente pleonástica. O "termo" sempre é científico, no sentido de que sempre é CONSTRUÍDO no âmbito de uma ciência. E mais: o "termo" sempre é construído, também, no âmbito de uma TEORIA. A palavra "sonho" tem significado X para um xamã e tem significado Y para um analista freudiano. "Sonho" é palavra de uso não-científico e vira "termo" DENTRO da teoria freudiana. Por isso, não concordo muito com a idéia de que "um conceito seja um slogan". Até é, no sentido de que o termo, como o slogan, tem um significado TOTALMENTE CONSTRUÍDO. Mas o slogan não tem o que os lingüistas chamam de "significado fechado". Por "significado fechado" entende-se um significado unívoco, quer dizer, não-ambíguo -- o que se conhece também como "definição". "Termo", portanto, é sinônimo de "definição". O "termo", como a "definição", responde à pergunta "o que é x?" O que é o mesmo que dizer que só se definem ELEMENTOS. Nas matemáticas, na lógica e na filosofia, esse negócio de definir é facílimo. Mas em outras ciências é sempre um rolo. Se eu pergunto "o que é 'biopolítica'?" É claro que a definição tem de começar por "Biopolítica É uma política que... [e o resto todo que se queira ou que se possa acrescentar sobre "bio"]. Se eu pergunto "o que é 'biopoder'?" É claro que a definição tem de começar por "Biopoder É um poder que... [e o resto todo que se queira ou que se possa acrescentar sobre "bio"]. Só essa diferença entre essas duas palavras (política e poder), já é abismo que chegue. Isso ajuda a entender que o 'meu' problema não é uma besteira: é um bom problema, no sentido de que, se tentarmos resolvê-lo, a gente já aprende muito só na tentativa, mesmo que não se o resolva completamente). Junte a isso o abismo que é "bio" [gr.] e, sim, temos um problema grave no qual é preciso mexer o mais possível. Conexões 19 GLOBAL


vida nua

a vida em cena, É importante considerar, além de tudo mais, que SÓ NOS INTERESSA conhecer o significado desses TERMOS dentro da específica teoria que estamos estudando. Tudo isso, só pra te dizer que NÃO FAZ MAL se, de início, um determinado conceito TENHA DE VIR ACOMPANHADO de toda a sua 'genealogia', quer dizer, de tooooooooooooooooooooooooooooooodos os livros e ensaios nos quais alguém tenha tentado postular uma determinada definição nova, quero dizer um TERMO novo. E acho, também, que nós não estamos querendo falar PARA a multidão. A multidão somos nós mesmos, sempre polifônicos (Bakhtin, sim, sempre nos ronda!). Nós estamos falando DENTRO da multidão. Nós somos a multidão e somos, cada um, multidão. E, sim, estamos falando para nós mesmos. Como a Julia Kristeva escreveu: "falar é falar-se." Isso não significa que nós (nós todos, vc inclusive, é claro) estejamos partindo "apenas de nossas estruturas mentais", como vc escreveu. Nós estamos na (nossa) luta para entender o significado de duas palavras -que já estão propostas num determinado corpo de idéias, vale dizer, numa teoria. Pra entender (e, ao mesmo tempo, pra ir esclarecendo) esses conceitos, temos de ler, cada vez mais, os textos já construídos DA TEORIA QUE ESTAMOS ESTUDANDO. Tudo é luta, meu amigo. Mêo! Eu escrevo demais. Desculpem. Abraço, Caia.

Data: 03/10/07 09:36 De: Leonora Corsini Para: Universidade Nômade

Não tem di kê, Caia. Eu acho essas discussões ótimas, a gente está sempre aprendendo, até o que achava que já tinha aprendido. É isso que vc quer dizer com o aprenderfazer-ensinar da multidão, nao é? Sobre biopolitica e além, lembrei de uma fala muito bacana do Peter Pal Pelbart, apresentando a Companhia Ueinzz num evento de Saúde Mental e Cultura aqui no Rio: “A vida em cena, vida por um triz (uma estética e uma ética) – que não é a vida nua de Agamben – é uma vida em estado de variação, são modos menores de viver que se sobrepõem aos modos maiores, indo do biopoder à biopotência. É quando a subjetividade se torna dispositivo biopolítico". Queria aproveitar para agradecer pelas traduções com que vc nos tem brindado, a carta do Gorz foi belissima. Bjs, Leo

a vida por Data: 03/10/07 11:07 De: Rodrigo Gueron Para: universidade nomade Oi Caia.

um triz...

Não pude ler todos os imeios desta discussão que me interessa e muito. Mas eu acho que Bergson é um filósofo materialista, e a definição que Deleuze faz da realidade em Bergson (que creio já está no próprio Bergson) é das mais interessantes´: "menos do que queriam os empiristas, mais do que queriam os idealistas” ( citado de memória, sujeito a consertos). Abaixo tem um endereço da revista eletrônica Aisthe, editada pelo Fernando Santoro, onde tem um texto meu (O Pathos artístico da Filosofia), que, lá pela página quatro, logo depois que eu falo sobre Simondon, mostro um pouco porque acho Bergson materialista. Mas o materialismo, como em Deleuze e Espinosa, do devir; o que eu chamo de " empirismo hieraclítico," quer dizer, o que não crê no " atributo essencial da substância" como em Aristóteles. Daí aliás vem um mal entendido que deu nas " ciências naturais" e na biologia como é entendida contemporaneamente; o que acaba sendo uma expressão do biopoder ela mesmo, quer dizer, o corpo compreendido apenas como o que deve ' sobreviver" e os médicos sendo chamados como " as autoridades" para falar onde começa a vida e opinar sobre o aborto. Mas falo mais disso depois que acabar um trabalho que estou fazendo aqui. Aí leio os imeios com mais calma. Abs, Guéron. GLOBAL 20 Conexões

Data: 03/10/07 12:04 De: Fernando Santoro Para: universidade nomade

A propósito da revista AISTHE que o Guéron citou, este primeiro número é dedicado in memoriam a Gerd Bornheim e gira tematicamente em torno da morte (como sentido decisivo e constituidor da vida-existência – bios). Vale a pena dar uma olhada no artigo sobre as representações de cadaver e a cera de Descartes (o famoso exemplo para falar da inconstância da matéria, a res extensa, como diz o filósofo) entre outros. Segue o elo (que eu já mandei por ocasião do lançamento da revista)

www.ifcs.ufrj.br/~fsantoro/aisthe Abraços, Fernand.o

Data: 09/10/07 11:25 De: Caia Fittipaldi Para:universidade_nomade Anexo(s): LAZZARATO - Pour une redéfinition du concept de.doc (659298 bytes) NEGRI - definição de multidão.doc (131020 bytes) BodyPart.txt (187 bytes) Juntei num arquivo todos os textos que me mandaram/recomendaram sobre "Biopolítica" e "Biopoder" (Lazzarato em francês e espanhol, ainda sem traduzir, e outras coisas, inclusive os dois artigos que Leonora sugeriu). Deu umas 50 páginas. Aí vai o arquivo, que pode ser útil a mais gente. Mando tb uma tradução que eu fiz, a partir do francês, de NEGRI, Toni, 2002, "Para uma definição ontológica de multidão" (no arquivo, deixei, junta, a tradução para o inglês, que talvez ajude alguém). Isso estava aqui há tempos, pra mandar. Agora vai. Abs. Caia.

Luana Muniz, a rainha da Lapa. Foto de Pedro Stephan.


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Luana Muniz, a rainha da Lapa.

Por Pedro Stephan

Esse ensaio fotográfico é sobre a Luana Muniz, uma travesti que é a versão contemporânea do Madame Satã. Ela encarna com todos os brilhos a figura emblemática do malandro, que não é bandido, que não se esconde, nem vive na clandestinidade. Ao contrário, está ali diariamente, é articulada, tem contatos e se apresenta em shows nas boates gays. Por outro lado... nunca foi santa. Luana tem pelo menos uns 20 anos de pista e não morreu, nem foi morta, não está na cadeia, nem enlouqueceu, não se acabou nas drogas. Ela venceu, porque é forte e descolada, porque é literalmente brigona, porque sabe fazer alianças, sabe negociar, sabe jogar. Ela cuida das trans: se estão presas, ela vai soltá-las; se estão doentes, ela as conduz ao hospital Pio XV; se estão muito drogadas, ela as interna para desintoxicar, dá cesta básica para aquelas que estão com AIDS. Domina a Lapa, onde todo mundo bate cabeça pra ela. As travestis a chamam carinhosamente de “mainha”. Na posição em que está, Luana não precisava ir para a pista. Poderia ficar em casa, só organizando as coisas. Mas ela vai porque gosta, ama se exibir, flertar, arrasar na pista e se prostituir.

Quando a Lapa começou a ficar na moda, a prefeitura queria botar as trans pra fora dali, higienizar a área, mas ela se juntou às Ongs gays e às dos direitos humanos, pediu ajuda à imprensa e fincou o pé. As trans continuam no mesmo lugar de sempre: ali na Mem de Sá, em frente ao “Nova Capela” e ao lado do “Carioca da Gema”. Achei isto maravilhoso. Meu ensaio é sobre este balé que é o “trottoir” na pista, o espetáculo performático da Luana naquele espaço restrito mas interativo da calçada e das margens da rua. As travestis passam o dia inteiro se preparando para aquele momento e planejam tudo: criam figurinos, ensaiam as poses, se montam, se maquiam para poder criar uma mulher de fantasia e arrasar. Tive a oportunidade única de entrar na intimidade da rainha e fotografá-la. Mas não só isso: na verdade, Luana me bancou porque, com o meu equipamento ali no meio daquelas figuras brabas que se aproximavam cheias de más intenções, eu só saí ileso porque ela ia logo dizendo “Tá olhando o quê? Deixa ele fotografar em paz!”, e os ogros caiam fora. Depois que acabamos ela falou “Olha, aqui nesse quarteirão você fica tranqüilo mas, daqui pra lá, você guarda essa câmera na mochila, pega logo um táxi e vai embora porque eu não te garanto.” GLOBAL 22 Conexões


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GLOBAL 24 Conex천es

Luana Muniz, a rainha da Lapa. Foto de Pedro Stephan.


Vestindo Corpos.

Performance de Suely Farhi e Aimberê Cesar. Fotografia de Mauricio Ruiz. Centro da cidade do Rio. Cinelândia,1997. Conexões 25 GLOBAL Páginas 25 a 29.


Homem sanduíche. Homem vitrine de si. Pedaços de corpos no mercado de trabalho. Cabeça Mão Pé Sexo Olho Dedo Cabelo Nariz Boca Barriga Bunda Unha Dente Vísceras Suor corpo modelado, protegido, encapsulado, tratado, retratado, contratado, abstrato. GLOBAL 26 Conexões


Dois corpos vestidos de pedaços de corpos no espaço.

COR e PO O corpo único, na leitura, é o corpo de vários sentidos. A cada posição o corpo é outro.

COR PO'r dentro COR PO'r fora COR PO'r memória COR PO palavra, reescrito, aqui, neste texto, e em todas as revistas impressas, nesta edição. Quantos corpos incorporam cada corpo?

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Vestindo Corpos. Performance de Suely Farhi e Aimberê Cesar. Fotografia de Mauricio Ruiz. Centro da cidade do Rio. Cinelândia,1997. GLOBAL 28 Conexões


MAIS DO MESMO PRECONCEITO

Sofia Zanforlin

Seriados exibem temáticas orientadas a segmentos de público Seriados que exibem temáticas orientadas a determinados segmentos de público não são novidade nas programações de TV a cabo ou, mesmo, na TV aberta. Porém, desde o inicio dos anos 2000 observa-se não somente o crescimento da produção segmentada de seriados a públicos específicos, como o interesse na abordagem de temas levantadas por suas audiências, grupos étnicos ou de orientação sexual diversa, por exemplo. Foi nesse contexto que surgiu um dos mais destacados seriados com esse perfil, Queer as Folk. Com a primeira versão veiculada na Inglaterra, o seriado foi em seguida reformulado pela TV americana e chegou ao Brasil, em 2001, pelo canal a cabo Cinemax. A proposta dos produtores do seriado foi falar de pessoas tão comuns, que poderiam "viver na porta ao lado", como descreveu um de seus produtores, Ron Cohen, sem apelar para símbolos comuns à imagem do gay. Sem estigmas de gestos, roupas, modos de falar, além de romper com a "virtualidade" da prática homossexual. Logo, o foco estava voltado para o estilo de vida e as relações vivenciadas no cotidiano, que envolvem família, trabalho, relacionamentos amorosos, etc. As hipóteses, portanto, basearam-se na representação dos papéis sociais desenvolvidos pelas personagens: nos modelos recorridos por seus autores para a criação e o estabelecimento de uma representação social/audiovisual; na insistência ou não, de modelos de conduta sedimentados, de estereótipos presentes no imaginário corrente, seja esta audiência composta por heteros, seja por homossexuais. O objetivo era analisar essas abordagens e tentar descobrir se elas avançavam em novas formas de representar o homossexual, se problematizavam a construção dos perfis das personagens, no âmbito de seus hábitos e atitudes. No entanto, uma das primeiras constatações que puderam ser observadas foi a manutenção de alguns estereótipos. As imagens e mensagens acerca do feminino, por exemplo, estiveram sempre apoiadas em sentimentos que tradicionalmente permeiam a construção da imagem da mulher. A maternidade, abnegação ao parceiro, fragilidade, sensibilidade, capacidade de compreensão,

doação, eram as marcas fundamentais das personagens. E não apenas as mulheres foram representadas envoltas nos mesmos estereótipos, mas também as personagens masculinas que estavam relacionadas à feminilidade.

No tema relacionada à família, o modelo patriarcal foi incorporado nas representações do seriado. As personagens homosexuais contam com a compreensão materna, provavelmente numa referência à própria constituição do ser feminino, de acordo com a imagem das mulheres construída no seriado. O pai é o provedor, distante, agressivo, temido. Desaponta-se com o fracasso de não ter conseguido criar um filho heterosexual. A dificuldade em assumir-se surge, portanto, primeiramente, no âmbito familiar, em seguida, no ambiente de trabalho. Durante a trajetória da análise pertinente a essa temática, observamos que as personagens que lidam num ambiente de trabalho predominantemente heterossexual, temem pela descoberta da identidade gay e nas conseqüências decorrentes dessa descoberta, seja na obstrução no desenvolvimento de suas carreiras, seja pela demissão. No que concerne à relação entre gays e heteros, o seriado optou pela hostilidade ao como generalização. Além das dificuldades da convivência diversa no ambiente de trabalho, não encontrarmos nenhum contato entre gays e heterosexuais que não fosse marcado pela violência, insistindo na demarcação da distância e na intolerância de ambos. O seriado mantém o encapsulamento de gays em guetos privados. Na temática das parcerias e casamentos desenvolvidas ao longo da primeira temporada de Os Assumidos, modelo escolhido foi o heterossexual, ou seja, os papéis foram desempenhados e construídos baseados na conduta homemprovedor, mulher-dona-de-casa. Assim, ao representar as relações de mesmo sexo, o seriado se esquiva de apresentar novas formulações ou mesmo atualizar as formas de representação das relações entre os gêneros. Recorre a imagens impregnadas no imaginário social em torno dos papéis que “devem” ser exercidos de acordo com as ações correspondentes ao sexo biológico.

Por fim, gostaríamos de ressaltar as questões sobre a Aids. Percebemos nos episódios da primeira temporada que abordaram o tema, as visões acerca da Aids resgataram concepções ultrapassadas tanto sobre formas de contágio do HIV, como da convivência com a doença. A personagem Emmett lança-se em elucubrações infundadas sobre a possibilidade de haver contraído Aids através de um beijo, ignorando por completo as conhecidas formas de contágio. Em meio aos momentos de temor de Emmett, foi possível constatar o resgate da imagem de doença-punição sobre homossexuais, que envolveu a Aids em meados da década de 80: Emmett decide não se relacionar mais com homens se o resultado do exame desse negativo. No caso da personagem Vic, único soropositivo da primeira temporada, sentimos falta da expressão de uma sociabilidade espontânea, pois ele não trabalha, não tem amigos, não se relaciona amorosamente. A Aids é representada como uma condenação à solidão e privação das esferas que compõem o cotidiano. Em franca contradição com os discursos e campanhas que procuram dar um novo sentido à vida dos soropositivos, combatendo a auto-piedade e o preconceito. Nesses momentos, o seriado perde oportunidades de revisar e questionar condutas, e não coloca em xeque a transitoriedade das identidades, como propuseram os estudos feministas e os estudos gays, por exemplo. Não questiona, portanto, os sistemas de representação que dão sentido à marcação das identidades. Apesar disso, podemos apontar o fato de que a existência de produtos culturais segmentados pode se configurar como anúncio de mudanças e participações inclusivas. Queer as Folk pode ser descrito como um seriado de sucesso, tendo alcançado índices significativos de audiência e permanecendo no ar durante cinco temporadas. Algumas das conclusões relatadas aqui, poderiam ser modificadas caso as análises contemplassem as 4 temporadas que se seguiram. No entanto, no conjunto da primeira temporada, percebemos que os discursos deixaram de ser questionados e problematizados no âmbito da manutenção de concepções, estereótipos, no desempenho de papéis sociais e preconceitos. Conexões 29 GLOBAL


SOCIEDADE EM REDE

Dalton Martins e Hernani Dimantas

Multidões inteligentes e transformação do mundo Ao preparar essa coluna, navegando através das redes, encontramos algo que permite ilustrar alguns dos conceitos que estamos construindo em conjunto e "presenciar" esse estar em rede. Antes de iniciarmos nossa conversa, vamos dar uma olhada nesse vídeo sobre redes sociais. A sociedade sempre funcionou em rede. Aliás, sociedade e rede são conceitos indissociáveis. Os seres humanos vêm se organizando em redes colaborativas desde o começo dos tempos. Há muito que tal tipo de organização permite que sejamos capazes de transformar o mundo ao nosso redor, criando conhecimento e cultura de maneira coletiva. Não há sociedade, se não houver redes: de amigos, famílias, primos e primas. Conectados por um algum fator que combina os anseios, interesses e desejos das pessoas. Redes não são novidades. A era industrial, sob o domínio da comunicação de massas, deixou a rede escondida. Em segundo plano. Mas, a internet tem nos levado a reviver a idéia. O sistema torna-se mais abrangente. As redes de amigos cresceram. Hoje em dia, com o advento e popularização da Internet, novas redes colaborativas, voltadas para a produção criativa, têm surgido com incrível velocidade, criando bens coletivos de valor inestimável.

cados antagônicos. Entretanto, a sutileza do destino aproximou conceitos tão dispares. Precisamos contextualizar essa dicotomia e pensar no fato de que ainda não começamos a pensar. Pois a equação poder e saber está desbalanceada numa entropia negativa. O saber só existe quando está livre para voar. O conhecimento livre pressupõe o desatrelamento do poder. No entanto, a idéia de redes do conhecimento está sendo aplicada de forma esquemática nos projetos de inclusão digital. A tirania do conhecimento formal vem avassalar a periferia. Pois estamos falando de formas diferentes de conhecimento. O que é bom para o centro pode ser descartável para a periferia. E viceversa. As redes do conhecimento acadêmico não fazem sentido, porque não aglutinam as pessoas aos interesses comuns. A rede indica um futuro libertador. A web só faz sentido quando um se preocupa com o outro. Numa circulação generalizada e libertadora de fluxos de informações e das ondas econômicas. A web é um mundo que nós criamos para todos nós. Só pode ser compreendido dentro de uma teia de idéias que inclua os pensamentos que fundamentam a nossa cultura, com o espírito humano persistindo em todos os nós. Tal compromisso entre humanos, tal generosidade altruísta não está desenvolvida no centro.

Esquecidas na era industrial, mas renascidas com a internet, as redes sociais desafiam a fusão entre o poder e o saber, permitem que colaboração e generosidade sejam lógicas naturais e podem fazer da emancipação um ato quotidiano. A rede dos hackers, um dos exemplos mais evidentes, produz, todos os dias, inovações técnológicas que prometem revolucionar a economia dominante do mercado de software. São os chamados softwares livres, que podem ser instalados gratuitamente no seu computador, permitindo que você realize uma gama enorme de atividades, desde conectar a sua câmera digital até editar e mixar uma música. Mas o mais importante é que estes softwares são bens criativos compartilhados nessas redes, que podem ser estudados e melhorados por todos.

A produção coletiva e descentralizada de bens criativos não se aplica somente ao software. Já começam a aparecer reflexos dessa nova forma de produção em diversas áreas do conhecimento. Um ótimo exemplo é a WikiPedia, uma enciclopédia construída coletivamente na web. O software livre é o caso mais conhecido e mais impactante de uma nova dinâmica que demonstra a produção de conhecimento livre como alternativa economicamente viável e sustentável. Poder e saber são antagônicos. Saber exige liberdade, e despreza a autoridade sobre outros Pretendemos discutir o surgimento das novas redes, o papel da internet e da tecnologia digital como catalisadores de multiplicação, e os impactos sociais, culturais e econômicos deste novo meio de produção criativa. Poder e saber têm signifiGLOBAL 30 Caderno Brasil do Le Monde Diplomatique (www.diplo.org.br)

Muito mais que conhecimento formal, as redes articulam convívio, solidariedade, mobilização Esse conhecimento está impregnado nos mutirões. No efeito puxadinho colaborativo. É só chegar para ajudar o ser humano ser mais feliz. Uma mobilização que vai além da boa ação. É cotidiana e despretensiosa. Howard Rheingold, autor do livro 'Smart Mobs' diz que o potencial transformador mais profundo de conectar as inclinações humano-sociais à eficiência de tecnologias da informação é a possibilidade de fazer coisas novas juntamente, o potencial para cooperar numa escala e de maneiras nunca antes possíveis.

E mais: multidões inteligentes (smart mobs) emergem quando a comunicação e as tecnologias da computação amplificam o talento humano para cooperação. As redes da mobilização englobam a rede do conhecimento. São mais factíveis, reais, e com resultados rápidos. A sociedade civil se organiza, compra, vende, troca, aprende e ensina mobilizando as bases para o interesse comum. Desenvolver a comunidade, criar filhos, conviver com amigos, trabalhar e tentar ser feliz. Dizemos que estar em rede não há mais necessidade de operar a mudança social, ela se faz permanente.


DIÁLOGO DE FALANTES E MUDOS NA MÍDIA BRASILEIRA Fábio Goveia O atual debate na mídia e sobre a mídia brasileira, despertado após a reeleição do presidente Lula é uma excelente oportunidade para pensarmos como vivemos num país dividido. Ou, como Zygmunt Bauman: “num disse apartheid às avessas”. Um mundo dividido em que os que estão na camada superior da sociedade, ou aqueles que detêm privilégios, não conseguem enxergar os que estão por baixo, ou os sem privilégios. Uma característica de todas as sociedades sempre foi a estratificação. Contudo, esse hiato sempre presente e muitas vezes invisível, tornou-se claro como um dia de verão no discurso da mídia depois do pleito que manteve um ex-metalúrgico no poder. “Não queremos vocês perto de nós”, esbravejam as entrelinhas de um jornal diário carioca quando trata dos sem-teto. É a voz dos que estão do alto olhando para baixo sem compaixão. Mas como os que estão por baixo não podem falar, o diálogo não acontece nunca: é sempre um monólogo. Noutras palavras, apenas a classe mais abastada tem voz na sociedade brasileira midiatizada (midíocre). O privilégio de alguns – e (é) o desgosto de muitos – é a expressão de quão complexa é a situação das sociedades contemporâneas e de como a mídia reduz essa desigualdade a dados estatísticos frios. Apesar de essa situação não ser uma exclusividade brasileira, em terras tupiniquins os principais periódicos levantam uma verdadeira cruzada quando o assunto é ampliar o diálogo entre os que estão por cima e os que estão por baixo. Em muitos países, ampliar o acesso aos privilégios também é visto como problema. Mas no caso brasileiro, isso se tornou mais evidente nos últimos acontecimentos, tais como a “crise aérea”, o “acidente do avião da TAM” ou o “fim da CPMF”. Por que parte da imprensa mostra de maneira tão clara que o extinto imposto sobre o cheque onerava mais os mais pobres? Se para quem movimentava R$ 1.000,00 por mês o valor recolhido aos cofres públicos era de 38 reais. Que fórmula foi essa adotada pela mídia? Essa pergunta só tem uma resposta possível: o imposto sobre as transações incomodava muito mais aqueles que têm muito dinheiro, assim, a mídia cuidou de criar um mundo fantasioso em que os pobres precisavam ser salvos.

Sem entender os problemas e as soluções sociais, noticiário apresenta hiato comunicacional diariamente nas páginas dos jornais “Se os leões falassem, não os entenderíamos.” Ludwig Wittgenstein

Mas há outros momentos em que a mídia é mais explícita em relação à sua posição. A crítica aos programas de redução da desigualdade no Brasil sempre enfrentam críticas vorazes nas páginas dos jornais. A pergunta é: por quê? Por qual motivo o estabelecimento de cotas nas universidades parece ser um projeto tão obsceno para a imprensa dita “objetiva”? Parte das respostas está no fato de que há um hiato comunicacional na sociedade brasileira contemporânea que impede que os cidadãos de baixo conversem com os de cima. Nessa sociedade, não é possível que os beneficiários de soluções do governo sejam os que têm menos dinheiro aplicado nos fundos de investimento. A universalização dos benefícios sociais não pode existir, uma vez que o próprio capitalismo necessita desse abismo. É por isso que mesmo os mais abastados reclamam que lhes falta algo. Assim, o fosso é a expressão do crescimento de parte da sociedade – da parte de cima. Não é possível, portanto, que a maioria da população tenha acesso a um sistema de transporte coletivo eficiente, ou que possa conhecer Nova York ou Paris, ou ainda que tenha acesso à internet rápida. A distinção deve ser preservada. E a função da mídia nessa separação é bem evidente. Como aqueles que têm voz midiática são os que se sentem ameaçados pela palavra “universalizar” ou pela expressão “para todos”, o “acesso” é algo que deve ser restringido para a manutenção dos que estão no topo. Soluções para poucos Essa estratégia da escassez como princípio do valor explica muitos dos nossos problemas midiáticos. Por exemplo: quanto maior for a distância entre as poltronas dos aviões brasileiros, mais

cara será a passagem, logo menos pobres dividirão espaço com os ricos nas mesmas aeronaves ou nos saguões dos aeroportos do país. Ora, por que essa proposta de ampliação do espaço – chamado por um ministro de Governo como “espaço vital” – entre os passageiros nunca foi tratada quando se fala de ônibus? O tal espaço essencial é menos vital quando os beneficiários são pessoas sem fala na imprensa. O hiato comunicacional na mídia brasileira exprime uma ruptura, na qual os que não podem falar e os que não podem ouvir jamais se encontrarão. A cobertura jornalística de alguns temas expressa esse abismo. Os temas que dizem respeito ao aumento do acesso aos bens sociais são tratados pela mídia com extremo ensurdamento. O recente caso da CPMF mostra bem isso. O fim do imposto, aprovado pelo Senado Federal, foi tratado como se não houvesse implicações políticas no fato. A cobertura manteve a linha do “quanto o cidadão vai economizar com o fim da CPMF”. Neste ponto, podemos ver como a pseudoesquerda e a direita estão mais próximas que nunca. Uma manifestação de partidos pseudo-esquerdistas contra a ampliação das vagas no ensino superior ou contra qualquer outro tipo de mudança demonstra uma postura de manutenção dos privilégios dos que já estão dentro do claustro acadêmico. “Incluir sim, mas nem tanto assim”, dizem eles. Direita e esquerda desejosos por manter o status quo. Tudo deve ficar como está. Não entender a necessidade de incluir é aumentar o hiato comunicacional. A luta deve ser para que sejam ampliados os direitos. Assim, a busca por mais acesso deverá levar a um círculo virtuoso, alterando essa composição social disposta na mídia. É preciso que os de baixo falem, mas de modo que sejam ouvidos. Como? Através do uso de novas tecnologias de comunicação. Uma comunicação libertadora se dá no universo blogueiro, por exemplo. O rompimento da membrana midiática que separa os dois mundos (um que tem voz e um que não é ouvido) por meio das novas formas de comunicação coloca em xeque esse sistema perverso dos meios de Comunicação Social no Brasil. Talvez estejamos no caminho para que essa comunicação se torne verdadeiramente social. Conexões 31 GLOBAL


QUEM CONTROLA A INTERNET EM

VITÓRIA?

Mas por que os muitos estão fora da Metrovix?

Sob domínio da ideologia da “segurança corporativa de rede”, Rede Metrovix, em Vitória, é apropriada por poucos, e gestão do PT perde, por enquanto, oportunidade de dar acesso universal e gratuito à internet na cidade Fábio Malini

GLOBAL 32 Universidade Nômade

Está em curso no país uma política de instalação de redes de alta velocidade, levada a cabo pelo governo federal em parceria com as administrações locais, que visa conectar instituições públicas e privadas, através de fibra óptica, formando redes de acesso rápido à internet. A boa notícia é que cada ponto da rede é potencialmente um provedor de acesso sem fio à net, isto é, juntos podem compor uma grande nuvem de acesso livre e gratuito à internet para toda cidade, expandindo sua missão para a inclusão de todos ao mundo virtual. Em Vitória, a rede, já foi instalada, e é chamada de Metrovix - Rede Metropolitana de Vitória. Possui uma extensão de 52 km, conectando escolas, unidades de saúde, prédios das administrações do Poder Executivo, Legislativo e Judiciário, autarquias estatais, instituições de ensino e pesquisa. Não há dúvida que toda a classe política apóia essa experiência, visto que proporciona acesso rápido a internet, que, por conseqüência, permite a realização de atividades antes impensadas como telemedicina, educação a distância, capacitação via teleconferência, televisão ao vivo, sistemas integrados de gestão pública etc. Contudo, o problema é que há uma disputa dentro da gestão do PT sobre o que a Metrovix quer dizer. Até agora está ganhando o discurso tecnocrático, que sustenta uma política retrógrada de bloqueio do acesso universal dos cidadãos às redes virtuais. A partir da prática desse discurso, a Metrovix – que tem o dever, segundo o protocolo assinado com o Ministério de Ciência e Tecnologia, de prover “acesso às tecnologias de informação e telecomunicação a um contingente da população hoje afastado por falta desta infraestrutura” – está cada vez mais nas mãos dos poucos (circunscritas ao aparelho do Estado e às instituições privadas de ensino) ao invés de pertencente aos muitos (isto é, os diversos grupos sociais da cidade).

Os muitos estão fora da Rede Metrovix por uma pluralidade de motivos. O primeiro e mais importante deles é a escassa existência de sujeitos políticos que buscam radicalizar a democracia no campo da comunicação e informação. A gestão do PT é até aberta às chamadas mídias cidadãs, mas o problema é que a sociedade civil organizada mira suas lutas mais no plano nacional (as concessões de rádio e TV, os novos marcos regulatórios etc) do que efetivamente na construção de um modelo local de comunicação democrática. Além disso, a Universidade se mantém totalmente inerte nesse processo, mantendo-se no cômodo papel de consulting. Assim a “internet livre e gratuita para os muitos” fica de fora da agenda pública local. Na outra ponta, há um conjunto de sujeitos – o grupo de administradores de redes corporativas – que reinam absolutos, utilizando-se daquilo que a Marilena Chauí chamava de o “discurso competente”, ou seja, de um discurso técnico oportunista que busca assegurar a gestão da rede como um atributo desses técnicos, sem serem questionados sobre as opções de softwares da Administração Local (como andam e quanto custam os contratos com as empresas que prestam serviço às redes virtuais públicas da cidade?); sobre os protocolos que administram as redes (são abertos ou fechados? como funcionam? protegem o direito à privacidade etc?) e sobre o controle do tráfego de dados (por que bloquear o direito em buscar determinados assuntos na internet? Isso não seria improdutivo? Por que as pessoas não tem o direito de gerir autonomamente os canais de comunicação com os diversos públicos da cidade de Vitória?). Assim, no campo da informação, esse vazio de subjetivação da sociedade civil, conjugado a elite tecnocráticainformacional estatal, paralisa a gestão do governo progressista do PT em


Vitória. Isso é um belo caso para mostrar que não há governo sem os muitos (é de multidão que falamos). Mas o dilema da Metrovix não pode ser explicada somente pela tecnocracia instalada na Prefeitura, nem mesmo na incipiente subjetivação social quanto à necessidade de freenets. Há ainda o discurso, presente na cabeça dessa tecnocracia, que redes livres é algo que beneficia o crime ou a “esperteza popular”. É absurdo pensar que isso exista numa administração de esquerda. Mas o grande perigo, para essa pequena parcela de gestores do governo da capital, é que a internet fique nas mãos do donos de lan house, por exemplo. O argumento é que, se o sinal sem fio de acesso à internet for aberto a todos, alguns pegarão esses sinais e o comercializarão para as massas pobres e excluídas, pois que estas não possuem computador e terão que pagar R$ 1 por hora a lan house, que são entes privados. Assim o que seria comum se tornaria privatizado. Ora, isso é ridículo e silógico. Até agora a Metrovix é uma rede privatizada mais do que pública, pois que uma estrutura de redes velozes para faculdades privadas e públicas – onde circula a nata das elites econômicas capixabas – e os muitos estão sem nada. Por que criar e estruturar, através do acesso à net, sistemas de inovação para essas faculdades e a universidade e deixar os muitos sem nada?

Na verdade, o acesso a todos à internet faz com que a classe política tenha novos desafios: ampliação da política assistencial (é isso aí, assistencial) para o acesso à informática, com doação de computadores, com a criação/ampliação de equipamentos coletivos de acesso (como telecentros etc), com a capacitação dos sujeitos no desenvolvimento de programação, manutenção de redes etc, fazendo com que os mais pobres tenham o direito a trabalhar nessa ramos de atuação e não só tenham que ser pedreiros e pintores. Além disso, uma cidade conectada estimula o surgimento de novos veículos de comunicação, para além do circuito massivo da informação. Veículos que possam ser mais colaborativos e democráticos, por ter dentro deles todos os grupos sociais existentes no município, incentivando assim o pertencimento à cidade, a produção de comunidades virtuais locais e a ligação de pessoas que estão em mundos totalmente distintos em Vitória.

Não há segurança completa em sistemas centralizados de informação Agora a pior lógica que sustenta esse “seqüestro do comum” e bloqueia a produtividade, em termos de acesso ao conhecimento, é o discurso da segurança corporativa dos gestores de tecnologia da informação. Esse discurso traz consigo uma série de tecnologias (geralmente proprietárias) que faz a alegria de um conjunto de empresas que vendem aplicativos de segurança (ultrapassados) para prefeituras e empresas. O discurso para isso é razoavelmente simples: sustenta-se que a gestão séria de qualquer rede corporativa deve ser pautada pelo máximo filtro dos dados, haja visto um monte de crackers espalhados pelo mundo. Sendo assim, deve-se constituir um sistema que filtra os visitantes e barra aqueles que não preenchem certos pré-requisitos (desde o login e senha próprios registrados em um servidor central ao bloqueio por determinados assuntos buscados no Google). Na prática, esse modelo de rede preconiza que algumas partes da rede não podem se comunicar totalmente com as outras. Isto é, você pode sair, mas não pode entrar. O problema é que os firewalls (uma das principais tecnologias de bloqueio de fluxo de dados) não agem de forma restritiva por onde passa todo o tráfego da internet (a porta 80 dos computadores, por exemplo). Qualquer usuário hábil em segurança de rede sabe disso. A dependência dos sistemas de bloqueio (principalmente, firewalls) produz ainda mais vulnerabilidade, pois que os sistemas ficam, como salientam os crackers, “crocantes por fora, macios e suaves por dentro”. Na raiz dessa vulnerabilidade está a premissa extremamente equivocada de que o controle do sistema das redes deve ser centralizado. Em matéria de TI, quanto mais centralização, mais fácil é a queda de um sistema (é por isso que os especialistas da área colocam a centralização como a última das opções de segurança). A centralização é um erro, visto que uma boa política de segurança deve ser granulada, distribuída por grupos de trabalho, pois, ao contrário, qualquer “farejador”, em qualquer lugar da rede local, pode obter qualquer informação sem criptografia. No final das contas, uma boa segurança deve ser pautada

no princípio da resistência, e não do controle. E, por enquanto, redes mais resistentes são aquelas que tendem a ser mais distribuídas e descentralizadas. Vejam o caso do sistema financeiro brasileiro e do comércio eletrônico. Funcionam que é um beleza. Milhares de pessoas, neste momento, estão a realizar em algum caixa eletrônico atividades que antes eram feitas pelos bancários. Qual é a lógica da segurança? Permitir acesso universal a todas as operações financeiras a partir de dados criados pelos usuários (senhas, contrasenhas, etc) e autenticados pelo sistema. O povo de segurança corporativa dos bancos sabe que é só dando acesso universal ao sistema financeiro virtual para que os custos possam diminuir e a eficiência do sistema aumentar. Com isso, os bancos empurram para a inteligência coletiva a gestão contábil da vida, capturando nosso tempo e nosso trabalho. E como fazem isso? Com tecnologias de segurança corporativa para redes mais abertas ao usuário, através de algoritmos avançados e dispositivos de múltiplas chaves que dão autonomia local ao usuário. Assim, quem defende apenas a servidão central é porque não tem competência e conhecimento para gerir a realidade de acesso irrestrito às redes virtuais. É gente parada no “tempo da vigilância”. Não é preciso muito para sermos modelo de cidade para omundo Do ponto de vista legal, cabe ao município se tornar um provedor de acesso à internet, a partir dos critérios estabelecidos pela Anatel. Isso significa a realização de investimentos em infraestrutura para criar essa grande nuvem de conexão generalizada ao mundo dos bits. E isso é muito menos custoso do que se imagina. Para se ter idéia, o governo do Pará vai cabear todo o Estado e gerar pontos de acesso à internet sem fio (principalmente, para a população ribeirinha) por cerca de R$ 25 milhões. Veja, lá são cerca de 1,5 mil quilômetros de rede. Em Vitória, a rede já instalada é de 52 km. Então é só fazermos a conta e checar que o investimento em Vix seria muito menor do que quer o Estado do Pará. Mas, veja, tudo só progredirá se o governo local (a multidão que o compõe) resolver varrer de vez o discurso neoliberalizante (a lógica privatizante dos poucos) que ainda insiste em sobreviver. Universidade Nômade 33 GLOBAL


radicalização democrática e mobilização From: Giuseppe Cocco To: universidade nomade Subject: entrevista já está no ar.

http://p.php.uol.com.br/tropico/html/ind ex.shl boa leitura, Giuseppe From: Mauricio Siqueira To: universidade nomade Subject: Re: entrevista já está no ar.

internética

Cocco, muito boa a entrevista. No entanto, se entendi bem suas declarações, o parágrafo abaixo (a última frase) merece ser corrigido, não é mesmo? Trata-se de ver que distribuição de renda (políticas sociais) e mobilização política (radicalização democrática) não constituem mais elementos sucessivos às taxas de crescimento (política econômica) e à tomada de decisão (política de Estado). Pelo contrário, é a qualidade da política econômica e a tomada de decisão do governo que depende das políticas sociais e da radicalização democrática, pois essas são imediatamente produtivas." Parabéns e grande abraço Mauricio

da multidão

From: Giuseppe Cocco To: universidade nomade Sent: Saturday, August 04, 2007 11:19 PM Subject: Re: [Universidade_nomade] Fwd: Trópico - Entrevista no ar

Ola Mauricio, respondo em atraso... Valeu, há um erro na frase! Que nao sei mais se eu deixei passar ou foi o efeito da revisao. Corretamente, a frase sublinhada deve ser: "A qualidade da politica economica e da tomada de decisao do governo depende das politicas sociais e da radicalizacao democratica, pois essas sao ..." abs desde La Paz! Giuseppe

From: Caia Fittipaldi To: universidade nomade Date: Sun, 5 Aug 2007 09:27:26 -0300 Subject: Re: [Universidade_nomade] Fwd: Trópico - Entrevista do Cocco Ótimo. Agora está tudo perfeitamente claro: "Trata-se de ver que distribuição de renda (políticas sociais) e mobilização política (radicalização democrática) não constituem mais elementos sucessivos às taxas de crescimento (política econômica) e à tomada de decisão (política de Estado). Pelo contrário, é a qualidade da política econômica e da tomada de decisão do governo que depende das políticas sociais e da radicalização democrática, pois essas são imediatamente produtivas." Nesse parágrafo está posto, eu acho, o fundamento dessa nossa militância internética de multidão. Noutra metáfora, pode-se dizer que não se trata de "esperar que o bolo cresça, para dividí-lo". Em outras palavras: não se trata de esperar que alguma coisa cresça por ação do Estado nem como 'resultado' de políticas econômicas. Trata-se, no que nos diga respeito, de ativar as potências da multidão, para que o bolo cresça, pode-se dizer, de crescimento desejantemente democrático. Isso é o mesmo que dizer que nenhum crescimento só econômico me interessa (pq, se interessasse, seria como confessar que eu creio que o dinheiro traz a felicidade e que o dinheiro 'nos libertaria', pode-se dizer, 'automaticamente'). Nesse caso, é como dizer que há aí pressuposto um Estado desejante, 'acionado' pelo DESEJO dos muitos, né-não? Estamos pressupondo um Estado que deseja melhor democracia pra todos? (Pergunto, mesmo, sinceramente, pra eu entender.) No que ME diga respeito, continua ativada, na minha cabeça, a idéia do "enxameamento" -- de que Barbara me falou --, e que virou mote e palavra de ordem, cá na minha cabeça: "Desejamos enxamear as nossas vozes." Para fazer a democracia radical, é preciso enxamear o desejo dos muitos, quer dizer, organizar o carnaval. (É isso? Pergunto, mesmo, sinceramente, pra eu entender.) Haverá, então, alguma "pedagogia do desejo"? Bom. Perguntar não é pecado. GLOBAL 34 Universidade Nômade

organização


enxame To: universidade nomade From: Barbara Szaniecki Subject: Re: [Universidade_nomade] Fwd: Trópico - Entrevista + ENXAMEAMENTO

INTELIGENCIA DE ENXAME: Em Multidão, Negri e Hardt tocaram no assunto. Eles só "tocaram" no assunto: escreveram 3 páginas (pg 130 a 133) e passaram a bola pra gente: "aí, multidão, peguem esse pepino, ops, abacaxi e descasquem!" Caia perguntou se "para fazer a democracia radical, é preciso enxamear o desejo dos muitos, quer dizer, organizar o carnaval" e eu não sou doida de responder, vou tentar responder, lançar umas idéias... Enxamear como "organizar" Hummm...O problema começa na propria etimologia: organizar, organismo, orgão... Organizar ainda está muito presa ao corpo como hierarquia. Essa questao vcs podem ver em Carne e Pedra de Richard Sennet. O Sennet fala de um tal de Jean de Salisbury que fez o primeiro tratado político do mundo moderno (Policratus, ano 1159). O cara pensava em política tendo como modelo o corpo humano: o soberano ficava na cabeça desse corpo, a igreja no coração, os comerciantes (gulosos) no estômago, e por aí vai. Deixo a seqüência aberta pra vcs completarem com a imaginação de vocês... Essa imagem de "organização" criada no século XI (apropriada por Hobbes 500 anos mais tarde e re-apropriada pelos urbanistas e arquitetos funcionalistas 300 anos depois de Hobbes, já no século XX) associa a cada órgão individualizado uma função, estruturando o corpo social e político segundo uma hierarquia definida e pior, definitiva: uns poucos ficam lá em cima organizando e os muuuuitos ficam por baixo sendo organizados... é ruim, né? Sempre em Multidão, Hardt e Negri propoem subverter os De Corpore (os tratados políticos como o de Jean de Salisbury): todos pra cabeça, já! Reparem como H e N não falam em corpo político mas em carne da multidão. Corpo tem estrutura, carne tem consistência. Deleuze e Guattari propoem um corpo sem órgãos. O Maurizio Lazzarato também contrapõe a cooperação dos cérebros à organização dos corpos pra pensar as sociedades de hoje, as sociedades democráticas. A idéia por trás disso é sair dessa forma de organização hierárquica (não só isso, claro). Se a gente volta ao texto Inteligência de enxame, percebemos que a questão é a "formação de sistemas inteligentes sem controle central." xiii, a Caia vai me matar: "e onde é que vai ficar o Comitê Central"????? ;-). Caia, acho que no enxame, o CC dança... mas não desiste do enxameamento ainda não, vamos avançar mais um pouco... Pois não se trata de banir a tal da "organização", mas de pensar que organização desejamos: as arquiteturas de enxame constituem sociedades através da comunicação e da cooperação dos muitos para os muitos (e não as tais funções designadas a priori). Bom, ficamos então com alguma organização através da comunicação e da cooperação. E, claro, já sabemos que essa forma social que a gente quer é descentralizada (ou informe = sempre em formação, sem forma definitiva) e passa pelo desejo. Mas não sei se dá pra dizer que seria um "organizar o carnaval". Falo de carnaval como amadora. Profissa aqui na lista é o André Barros que é do Império Serrano. A única coisa que eu poderia dizer com certeza sobre esse fenômeno que chamamos de "Carnaval" é que o problema dele hoje é justamente que ele está "organizado" demais. Que ele garante a estabilidade de um sistema que coloca poucos lá em cima e muuuuitos lá embaixo. Desse carnaval aí eu tô fora (o que não quer dizer que não haja potência alguma no Carnaval, vamos combinar aqui antes de eu ser linchada pelos foliões). Prefiro o "carnaval dos movimentos" (Hardt e pelo Negri, sempre em Multidão, página 271) ou melhor ainda, prefiro as "carnavalização" (e aqui, pra quem quiser aprofundar, eu tô indo pro lado do Bakhtin). Essa carnavalização não é elemento estruturante coisa nenhuma, muito pelo contrário, é processo contínuo de subversão do "senso de hierarquia" que querem nos empurrar goela abaixo: é o que a gente faz quando subverte "cansei" em "caguei", "caos aéreo" em "caô aéreo"... as carnavalizações estão hoje nas ruas e na internete (e não no sambódromo do samba institucionalizado). Vamos voltar então à linha do "enxamear o desejo". Vamos enxameando, enxameando, enxameando e... alguma hora a coisa rola, não é? Se a gente fica pensando muito, fica "tentando entender o fenômeno", corremos o risco de perder o próprio desejo! Mas enfim, é legítimo tentar entender como esse enxameamento acontece. O que eu acho é que hoje, aqui no Brasil, já enxameamos quando conseguimos barrar o golpismo da mídia e re-eleger o Lula. E temos sim que analisar o que aconteceu pra ficarmos prontos para o que vem por aí... As abelhas enxameiam e na hora agá atacam. Será que elas têm formas de comunicação pra decidir quando e como e onde? Bom, a gente pode sair por aí observando as abelhas.... mas pode tambem seguir a dica do Hardt e do Negri e pensar mais na inteligência-em-rede aberta pelos meios ditos "pós-massivos" (continuando porém de olho nos meios "massivos" - nas "Organizações” Globo -, de olho bem aberto!). O zum zum zum da gente é um ruído altamente perturbador da ordem/hierarquia/organização deles. Universidade Nômade 35 GLOBAL


rizoma Pra fechar a questão: acho que uma das coisas que a gente tá querendo entender é se a bateria tocaria mesmo sem o centro, sem o Mestre de Bateria. Toca ou não toca? Será que, ao invés de todos direcionarem seus olhares ao Mestre, se deixassem se contagiar pela presença corpórea dos que estão ao seu lado, se prestassem mais atenção às singularidades musicais dos seus vizinhos, não teriam também algo como uma potente polifonia?

E aí, eu gostaria de voltar ao Deleuze e ao Guattari que falam em uma comunicação de vizinho a vizinho, uma coisa assim bem grudada, bem intensa, que tem a ver a meu ver com o que a gente faz aqui na internet (e aí, essa vizinhança evidentemente não é geográfica, mas de intelecto e de afeto): "Problema da máquina de guerra, ou do Firing Squad: é necessário um general para que n indivíduos cheguem ao mesmo tempo no estado fogo? A solução sem general é encontrada por uma multiplicidade acentrada comportando um número infinito de estados e sinais de velocidade correspondente, do ponto de vista de um rizoma de Guerra ou de uma lógica de guerrilha, (...), sem cópia de uma ordem central." (livre tradução minha do Mille Plateux, página 26 da edição francesa, não tenho a brasileira pra passar a página pra vcs mas é logo no inicio, no capitulo rizoma. Bom, acho que essa é uma das questões mais importantes de todo o livro) É isso aí, vamos continuar a construir esse rizoma de Guerra, juntando aqui nossos saberes. Quanto a "pedagogia do desejo"... complicado, complicado... quanto mais se explica, menos a coisa rola... abs pra todos e um especial pra Caia que me deu essa trabalheira danada ;-), Barbara

"enxame" versus "pólipo"

mônadas

From: Caia Fittipaldi To: universidade nomade Date: Mon, 6 Aug 2007 23:45:21 -0300 Subject: Re: [Universidade_nomade] Fwd: Trópico - Entrevista + ENXAMEAMENTO

Ô iéz, Barbara. Tô com esse "enxame" na minha cabeça, desde que vc falou disso.

Bom. Eu me lembrava, de, faz muuuuuuuuuuuuuito tempo, de que esse negócio de "enxame" é metáfora muuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuito antiga, que está em Leibniz, como está tb na Enciclopédie. Se há coisa que tem longuíssima história é esse negócio de "enxame"... que foi objeto de complexíssimas discussões entre os enciclopedistas: havia a turma que descrevia o mundo como se Deus houvesse organizado a natureza pelo "princípio do enxame", inimigos figadais dos carinhas que descreviam o mundo pelo "princípio do pólipo". (Pros que gostem desses conversês, há um texto interessante rde.revues.org/docannexe529.html , de que recorto um trechinho:

em

"Nous comparons le corps vivant, pour bien sentir l'action particulière de chaque partie, à un essaim d'abeilles qui se ramassent en pelotons et qui se suspendent à un arbre en manière de grappe; on n‚a pas trouvé mauvais qu'un célèbre ancien ait dit d'un des viscères du bas-ventre qu'il était animal in animali ; chaque partie est, pour ainsi dire, non pas sans doute un animal, mais une espèce de machine à part qui concourt à sa façon à la vie générale du corps. Ainsi pour suivre la comparaison de la grappe d'abeilles, elle est un tout collé à une branche d'arbre, par l'action de bien des abeilles qui doivent agir ensemble pour se bien tenir ; il y en a qui sont attachées aux premières et ainsi de suite ; toutes concourent à former un corps assez solide, et chacune cependant a une action particulière à part (ibid.)."

No geral, em Leibniz, trata-se de saber como as "mônadas" se unem: por acaso? São regidas? Deus tinha um plano 'geométrico' e, então, meteu cada monadazinha bem certinho, no lugar certinho? (E tem o seguinte: todos os problemas são sempre o mesmo problema, né-não? [risos, risos -- mas é sério, ou, pelo menos, alguém pensa que deveria ser muuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuito sério. Se se examinam bem as coisas, tudo é jogo, né?!] A luta continua.

Ah! E anoto, tb, que esse negócio de "órgão"/"organismo" tb tá lá naqueles começos: essa discussão toda, dos enciclopedistas, sobre "enxame" versus "pólipo", é uma discussão... de anatomia [risos, risos], pra eles verem comé que as "glândulas" "cooperam" pra funcionar num corpo.

Se o Comitê Central depender de mim, ele vai estar meio é muuuuuuuuuuuuuito mal defendido. Mas, sim, melhor vcs conhecerem logo a parte pior: eu vou defender o Comitê Central. Sem NENHUM entusiasmo, mas, sim, defenderei. 8-) GLOBAL 36 Universidade Nômade


monstro-multidão: “sou muitos” From: Caia Fittipaldi To: Universidade Nômade Date: Sat, 1 Sep 2007 21:49:34 -0300 Subject: Tudo bem... mas o discurso do "somos diferentes" é insuficiente (Re: "Fomos construtores da democracia brasileira. Somos um partido de vencedores" - palavras do Presidente Lula)

"Fomos construtores da democracia brasileira. Somos um partido de vencedores". Sábado, 1 de setembro de 2007, 11h07

Em seu discurso na abertura do 3º Congresso Nacional do Partido dos Trabalhadores, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva admitiu que o PT cometeu erros, mas ainda assim disse que nenhum outro partido tem mais autoridade política, ética e moral que o seu. Ele afirmou também que os partidários do PT não devem ter vergonha de pertencer à legenda. Tudo bem... mas o discurso do "somos diferentes" é insuficiente e tem de melhorar (e rápido!)

Eu não gosto desse discurso dos petistas (nem no presidente Lula, eu gosto disso, embora, sim, eu entenda que, nesse momento, o presidente não tinha melhor discurso para oferecer aos militantes do PT) de eles se apresentarem como "melhores", sequer como "diferentes".

A luta política NÃO É um concurso de ética nem de bondade nem de beleza nem de 'variabilidade' (quanto mais diferente for alguém... melhor será?)

Não gosto, mesmo, desse papo de 'somos diferentes'. Dentre outros motivos pq, consideradas só as superficialidades, tá na cara que o PT não é diferente de muita coisa muito ruim que há em TODOS os partidos políticos, no Brasil e no mundo. E as diferenças profundas que talvez haja no PT ficam impedidas de aparecer, pq, superficialmente considerado, o próprio PT parece satisfeito com definir-se como 'diferente'... nem eles sabem do quê seriam 'diferentes'. Essa conversa de 'somos diferentes', no limite, é tb elitista: só as elites, no universo, dão-se por satisfeitas com definirse, elas mesmas, como 'diferentes', 'exclusivas', 'raras'... ou... de 'griffe', quer dizer: elas 'não são' a massa informe, igual a si mesma pq é manifestação dos muitos, do monstro.

O Lazzarato diz, com muito acerto, eu acho, que "o capitalismo é um maneirismo". Esse negócio de 'somos diferentes', eu acho, também é um maneirismo, ligado ainda à ideologia do capital e dos capitalistas.

O monstro-multidão não diz, de si mesmo "eu sou diferente". O monstro-multidão só diz, de si mesmo "eu sou muitos", quer dizer, eu sou tudo-ao-mesmo-tempo-agora e todos os devires.

Entendo que o monstro-multidão não cabe em partidos. Então, se quer ser partido, o PT teria de trabalhar para construir um discurso que lhe desse alguma identidade, qualquer uma, a partir da qual fosse possível acompanhar os devires do PT. Declarar-se apenas 'diferente', de fato, é pura arapuca, até prôs petistas, que ficam sem meios para entender, até, os seus próprios devires-monstro. A luta política é uma disputa entre PROJETOS POLÍTICOS. "Ser diferente do que há" não é ter projeto político. De fato, apresentar-se como 'diferente do que há' é DEPENDER do que há, até para se auto-identificar.

Mais um pouco, coessa mania de 'ser diferente', haverá um partido pra cada grupo evangélico, um partido pra cada grupo de traficantes e, no limite, haverá um partido da D.Hebe e outro partido da Ana Maria Braga... porque interessa às duas definirem-se como "diferentes"... uma da outra... o que de modo algum provará que haja, mesmo, alguma diferença entre elas. O pior de tudo, eu acho, é que essa conversa de "somos diferentes", à qual o PT está agarrado há muito tempo, dá aos petistas a impressão de que sejam um partido satisfatoriamente definido; e essa 'impressão' impede que os petistas vejam que eles ainda não têm projeto político claro.

Como se 'ser diferente' fosse suficiente para dar identidade a um partido, identidade a qual o partido ofereceria aos militantes. O PT, porque ainda não tem identidade profunda e clara, para si mesmo, vira presa muito fácil, por exemplo, dos marketeiros. Não havendo identidade política no partido... qualquer Duda Mendonça vira a 'fonte de identidade' para o PT... com os resultados HORRENDOS que se tem visto.

Tampouco concordo com a idéia de que o PT tenha sido o único construtor da democracia brasileira. Dizer isso é o mesmo que dizer que um tijolo que tenha sobrado meio intacto depois de a bomba ter destruído Hiroshima bastaria para reconstruir toooooooooooooooooooooda a cidade de Hiroshima. Claro que aquele tijolo tem importância simbólica. O presidente Lula é, sim, uma espécie de único elo que ainda nos une ao passado das lutas pela redemocratização. Mas eu-euzinha (pra só falar do que conheço melhor) também sou uma espécie de elo simbólico que une gerações, no Brasil. E eu NUNCA fui petista, embora sempre tenha sido lulista, desde antes, até, de o PT existir. No mais, petista por petista, até a HH já foi. E, sim, ela é suuuuuuuuuuper 'diferente'. E daí que seja diferente?! Fosse um pouco menos 'diferente', seria, até, muito melhor para o Brasil, né-não? 8-) Universidade Nômade 37 GLOBAL


redes, enxame, microestrutura, r Date: Mon, 3 Sep 2007 19:11:25 -0300 To: universidade nomade From: Barbara Szaniecki Subject: [Universidade_nomade] Tudo bem... mas o discurso do "somos diferentes" é insuficiente (Re: "Fomos construtores da democracia brasileira. Somos um partido de vencedores" - palavras do Presidente Lula) e .... MAIS SOBRE ENXAMEAMENTO Nômades, o problema do discurso do 'ser diferente dos outros' (de que ninguém teria mais autoridade moral do que o PT) é que ele acabou colocando o PT numa arapuca: acabou sendo atacado pela esquerda moralista por um lado e pela hipocrisia burguesa do outro. Ruim, né? Pra avançar nesse papo, é preciso ler o discurso do Lula integralmente, mas me parece válido questionar se esse discurso do 'ser diferente" é útil para o trabalho que temos pela frente. Pode não ser de todo inútil mas também, da forma que é enunciado, muito útil não é... ...até porque o anúncio de que o PT EVENTUALMENTE abriria mão de candidato próprio anuncia por sua vez que estamos caminhando para uma outra forma de governo de esquerda. Nesse novo governo de esquerda, a questão do enxameamento será fundamental: todos diferentes, mas juntos (para desgraça da direitona). E como? Retomo aqui a discussão um tanto teórica, é verdade, mas absolutamente necessária. Como convergir, atacar e dissolver/diferenciar? Tendo em vista não apenas as eleições de 2008 ou de 2010, mas sobretudo o que nos interessa aqui que é nosso trabalho de multidão pela radicalização democrática da mídia e da universidade. Trago um texto de Brian Holmes do qual ia fazer uma tradução literal mas além da falta de tempo, nao achei meu dicionario de inglês para fazer o trabalho corretamente. English is not my beach. Traduzindo: Inglês não é a minha praia ;-) ... Então aí vai um inicio de tradução que virou uma espécie de resumo e mesmo algo como um comentário. Quem quiser corrigir algo, pode corrigir merrrmo, fique a vontade. Estou enviando num mail separado, pra quem preferir, o texto no original in english. REDES, ENXAME, MICROESTRUTURA - Brian Holmes (www.rekombinant.org) O texto discute a questão do enxameamento que, na opiniao dele, não é de todo imprevisível na medida em que pode-se encontrar 'padrões' de comportamento. A análise das relações em rede estão produzindo imagens/mapas dos relacionamentos entre indivíduos e grupos sem dar conta da própria qualidade da relação num contexto de dispersão de indivíduos móveis em espaços anônimos (cita 'a cidade grande', 'o mundo', o espaços telecomunicacional'). Afirma que se sabe muito sobre como determinados sinais estruturam o comportamento econômico desses indivíduos. Mas pouco se sabe sobre outros comportamentos. Pergunta então: - o que dá forma e padrão a comportamentos emergentes ('emergent behavior')? - como podemos entender a consistência interna de grupos e redes auto-organizadas? (acho essa segunda pergunta de muuuuuuuuito interesse para nóis aqui) BH traz então a figura do ENXAME a partir de Arquila e Ronfelt (The Zapatista 'Social Netwar' in Mexico): "O enxameamento acontece quando as unidades dispersas de uma rede de pequenas (e talvez algumas grandes) forças convergem para um alvo desde múltiplas direções." Convergir, dispersar e recombinar para um novo impulso: conseguimos formar uma imagem da atividade emergente cujo aspecto dinâmico estava ausente dos mapas de redes. Contudo, essa imagem dinâmica do enxameamento nos esclarece realmente sobre como a auto-organização acontece? BH considera que há dois fatores fundamentais para explicar a consistência da atividade humana auto-organizada. O primeiro é um horizonte –estético, ético, filosófico– compartilhado (comum?) a partir do qual se 'constrói mundos'. O segundo é a capacidade de coordenação e de trocas à distância de informação e de afetos, constituindo uma 'ecologia'. BH cita então o artigo "Creating Words: contemporary capitalism and aesthetic wars" e o livro Revoluções do Capitalismo ambos de Maurizio Lazzarato no qual ele traz o conceito deleuziano de 'modulação' pra mostrar como as empresas 'criam mundos de percepções estéticas e afetos para seus produtores e consumidores, de modo a amarrá-los juntos dentro de uma aparência de comunidades coordenadas sob as condicões dispersas da vida contemporânea. Eles o fazem através da mídia que, sob uma aparente diferença e pluralidade, incentiva um conformismo frente a 'majority models'. Essa criação de mundos não é realizada unicamente pelas empresas (corporations?) assim como não é realizada de forma simples. Cita Guattari que procurou abordar modelos ainda mais dinâmicos de tais ecologias humanas em seu livro Cartografias Esquizoanalíticas e cita como referência contemporânea a Karin Knorr Cetina e seu conceito de 'microestruturas globais'. Segue um parágrafo inteiro da tal KKC. A sociedade moderna, industrial, teria criado uma complexidade institucional, ou seja, mecanismos sofisticados de coordenação, autoridade e compensação que garantissem o funcionamento ordenado. Mas hoje, afirma KKC, a sociedade global vai em direção a diferentes formas de complexidade, complexidades que emanam por exemplo de arranjos (agenciamentos?) microestruturais. Hoje, certas formas globais não apenas não precisam da expansão da complexidade institucional, mas procuram evitá-las a todo custo. Mercados financeiros globais fogem dessas estruturas complexas pois são velozes demais para serem 'contidos' por ordens institucionais e procuram complexos padrões de interações dispersas. Nessa complexidade microestrutural, a ordem não resulta de processos sociais purificados mas é sempre entremeada pelo caos (grifo meu). KKC afasta a idéia comum de 'rede' como sistema de dutos transportando conteúdos para insistir no aspecto visual das ICTs contemporâneas; de 'dutos' a 'scopes/objetivos/metas'. Informação importante para coordenar a ação. Mas é a imagem que mantém o horizonte compartilhado e insiste na urgência da ação nela contida. (precisamos entender isso melhor, como é que a imagem entra aqui, certo? Não ficou nada claro pra mim). GLOBAL 38 Universidade Nômade


redes, enxame, microestrutura, r Movimentos de Software livre e movimentos de 'counter-globalization' têm demonstrado capacidade de enxameamento. "Existe o clássico padrão de convergência, ataque e dissolução apenas para convergir novamente em um ponto diferente (...). Evidentemente, indivíduos diferentes estão envolvidos a cada vez, diferentes grupos, diferenças de filosofia e modos de ação; mas um horizonte compartilhado torna todas as diferencas também reconhecíveis como pertencendo-se mutuamente Esta é a complexidade da auto-organização." (reparem na questão da diferença) BH acha que essas tendências em direção a emergência de microestruturas globais num ambiente institucional enfraquecido (reparem que esse 'ambiente institucional enfraquecido podem ser Estado, partido, sindicato, etc) vêm acontecendo há décadas mas só se tornou visível com o ataque da Al Qaeda aos centros de acumulação de capital e de poder militar nos EUA. A capacidade das redes operarem globalmente, independentemente e imprevisivelmente começou a aparecer como uma crise afetando as estruturas profundas do poder social (eu diria do CONTROLE social. Setembro de 2001 tornou visível o quanto estavam abaladas as ESTRUTURAS DE CONTROLE). A figura do enxame surgiu então nas discussões militares. BH volta ao artigos de KKC sobre mercado e agora sobre o Al Qaeda. Na medida em que o interesse pelo enxame e pela teoria da complexidade chega às ciências sociais oficiais, há o perigo de se tentar estabilizar as formas relacionais móveis. (ó, gente, parece que o BH está falando aqui conosco, está falando sobre o bloqueio/censura das redes, sobre a captura dos movimentos, etc). Há por um lado a tentativa de reforçar o papel do mercado global neoliberal pelo uso da força militar: extensão contínua do mercado global utilizando-se de suas tecnologias desterritorializantes levando a paz e a prosperidade necessárias ao desenraizamento das crenças fundamentadoras do terrorismo ao mesmo tempo que racionalizando o acesso aos recursos necessários para o capitalismo produzir um 'crescimento para todos' (esse Tio Sam acha que a galera da Vila Bagdá vai cair nesse papo... é ruim, hein?) E, por outro lado, o que vemos em resposta a essa extensão do mercado global são regressões a soberanismos e a formas neofascistas de nacionalismo e, de forma mais significativa, tentativas de configuracão de blocos econômicos continentais onde a instabilidade e o caos das relações mercantis poderiam ser submetidos a algum controle institucional. O BH cita alguns exemplos de blocos. Queria dizer que, embora esse texto traga importantes questões sobre redes e possibilidades de enxameamento, é equivocada essa posição de BH de colocar esses 'blocos' no mesmo saco de gatos das 'formas neofascistas de nacionalismo'. O que ele chama de 'blocos' são bloqueios merrrmo ou expansão de redes? São formas (neofascistas) de soberania ou são modos de superar as formas (neofascistas) de soberania? Como fica o Mercosul? Daí, sempre apontando por um lado o projeto Imperial e por outro os complexos processos de formação de blocos, BH diz ser necessário tomar uma posição com relação ao que, segundo ele, está na origem dos conflitos contemporâneos. E retorna às Cartografias Esquizoanalíticas do Guattari (1980): desde tempos imemorais, o capitalismo combina desterritorializações (destruição de territórios sociais, identidades coletivas e sistemas de valores tradicionais) e reterritorializações. Esse antagonismo é reforçado pelo crescimento dos fenômenos da comunicação e da computação ao ponto que esse último concentra seus efeitos desterritorializantes em faculdades humanas tais como a memória, a percepção, a compreensão, a imaginação, etc. (quem sabe o tesão?). Como resultado da incapacidade de se enfrentar esse fenômeno mutacional, onde um certo modelo ancestral de humanidade é expropriado em seu próprio seio, temos as ondas de conservadorismo que estamos presenciando (ele está falando basicamente do conservadorismo nos EUA mas tb cabe aqui). Como nos organizamos para enfrentar a dupla violência da desterritorialização capitalista e das reterritorializações nacionalistas e identitárias que dela decorrem? Nao se trata de um dilema Bush X Bin Laden (acho que há qui uma referência ao Choque das Civilizações do Samuel Hutington), mas de uma expropriação que se dá no coração do projeto moderno. Desde Setembro de 2001, vivemos simultaneamente dinâmicas hiperindividualistas da globalização capitalista e configurações arcaicas de poder identitário. Desterritorialização e reterritorialização: nem uma nem outra é positiva ou negativa em sua essência, mas a combinação de ambas geram as terríveis formas de opressão que conhecemos hoje. Então, the question is: é possível "participar conscientemente da improvisada, assimétrica e parcialmente caótica força de microestruturas globais, fazendo uso de sua relativa autonomia com relação às normas institucionais de modo a influenciar uma reterritorialização mais positiva, um equilíbrio mais saudável e dinâmico, uma melhor co-existência com o movimento de desenvolvimento tecnológico e de unificação global?" Segundo BH, o que está por trás do pensamento da KKC é que a unificação global não será possível através de processos institucionais pois ele complexo demais. O que virá depende das microestruturas e das pessoas que as inventarem (ou seja, depende do nosso trabalho de multidão, acrescento eu-euzinha ;-) ). BH conclui sobre essa experimentação como necessidade de procurar articulações (agenciamentos / ou microestruturas segundo a KKC) de modo a combater os poderes letais das nossas sociedades. Fala sobre os níveis local, nacional, regional e continental. Precisamos não apenas de novas instituições, mas de novos modos de se relacionar com as instituições... "muito do perigo e da promessa do momento presente pode ser encontrado nas complexas relações entre redes, enxames e microestruturas." Acho que esse texto sobre o enxameamento importante pra pensar nossos 'agenciamentos internos' (as relações entre os vários partidos de esquerda) e a nossos 'agenciamentos externos' (as relações entre nosso governo e os outros governos de esquerda, sobretudo aqui na América Latina). Pensar numa esquerda em rede, para além dos partidos (embora COM eles –pois eles ainda estão de fato aí– e COM suas diferenças) e para além dos Estados-Nação (embora COM ele –pois eles também ainda estão de fato aí– e COM suas diferenças). E pensar sobretudo no nosso "horizonte compartilhado" (ou constituição do comum), enxameando diferenças mais do que cultivando um patrimônio que seria em princípio diferente. Muito provavelmente Lula já sabe disso (mesmo sem ter lido BH, KKC ou ML). Abraços, Barbara Universidade Nômade 39 GLOBAL


soberania e nacionalismo, multidão e... Date: Mon, 3 Sep 2007 17:21:41 -0700 (PDT) From: rodrigo nunes To: universidade nomade Subject: Re: [Universidade_nomade] Network, swarm, Microstructure (de Brian Holmes) barbara

a confusao em relacao a 'imagem' na passagem que fala de 'scopes' eh a que a palavra 'scope' originalmente significa 'meta' num sentido visual (como seria 'alvo', em portugues); o jogo de palavras eh entre 'pipes' (tubos, dutos) e 'scopes', tanto como 'metas' como uma maneira informal de se referir a instrumentos de visualizacao (microscope, periscope etc.) -- ou seja, entre dois tipos diferentes de tubo.

entendido assim, 'imagem' se refere ao horizonte de referencia comum que emerge da interacao dentro de uma rede.

o artigo eh bom, e recupera uma parte da genealogia do termo 'swarm' que tinha ficado faltando na discussao anterior. o ressignificacao politica do 'enxame' vem do texto do arquilla e do ronfeldt, que saiu em 2001 e a partir daih foi citado, creio que primeiro, pela naomi klein e mais tarde pelo hardt e o negri e o coletivo notes from nowhere (em 'we are everywhere', que eh um livro excelente que nao saiu no brasil e constitui um otimo documento do movimento global entre 1994 e 2002).

uma palavrinha sobre o 'networks and netwars', que onde estah o texto sobre os zapatistas que o brian cita. ele foi financiado e publicado pela rand corporation, um think tank ligado a industria de armamentos americana. eh um estado sobre as ameacas do seculo 21, que identifica entre outros as redes internacionais de trafico de drogas, hooligans e anarquistas (no mesmo capitulo), grupos de 'advocacy' (conceito bem norte-americano, algo como 'lobby cidadao'), redes terroristas e os zapatistas. ele pode ser lido, de graca (ou, considerando que 'there's no such thing as a free book', gracas a industria armamentista) aqui http://www.rand.org/pubs/monograph_reports/MR1382/ index.html

em um texto que pode ser lido aqui http://info.interactivist.net/article.pl?sid=06/11/21/20322 50&mode=thread&tid=9 eu comento esse livro e chamo atencao para um fato que, para mim, estah ausente desse texto do brian. o enxame eh uma atualizacao momentanea de uma rede difusa, que tem a dupla caracteristica de ser temporario e se dar ao redor de um objeto definido.o exemplo classico seria as grandes mobilizacoes de seattle, praga etc., todos casos em que o objeto era dado 'de fora'. o que eu questiono eh justamente ateh que ponto o processo de dar-se um objeto (uma 'meta') eh possivel em grandes escalas. pequenas redes sao formadoras de um 'scope' comum, que as vezes pode atualizar-se em objetos; como isso se dah numa rede de redes difusa, e uma questao que nao soh nao foi resolvida na pratica, como o que tivemos de pratica ateh hoje sugere, na verdade, a sua impossibilidade... o principal problema do artigo do brian eh que ele me soa um pouco datado -- nao ha nada, por exemplo, a respeito do (relativo) fracasso de processos de larga escala como a acao global dos povos ou o forum social mundial.

GLOBAL 40 Universidade Nômade

blocos (o que eu digo aqui pode parecer excessivamente pessimista, por isso recomendo a leitura do texto que eu escrevi para um final mais feliz.) quanto aos blocos regionais, a posicao do brian eh mais ambigua do que voce sugere:

All these reactions can be conceived as “counter-movements” in Karl Polanyi‚s sense: responses to the atomization of societies and the ecological destruction brought about by the unfettered operations of a supposedly self-regulating market.<http://brianholmes.wordpress.com/2007/07/21/ swarmachine/#sdfootnote16sym>16 (ou seja, respostas a desterritorializacao absoluta do capitalismo -- e toda reterritorializacao eh necessaria para fazer uma desterritorializacao absoluta vivivel, caso contrario seja nohs, sejam os neo-nazis, sejam os terroristas islamicos ficariamos sem um 'territorio para onde voltar ao final do dia'.)

The political pressures on any democratic-egalitarian movement in the emancipatory tradition of the Left thus include the imperial project of a world market, the regressive nationalist refusal of it and the more ambiguous processes of bloc formation. (quer dizer, das reterriorializacoes que ele menciona, a dos blocos tem a vantagem de ser 'ambigua', ao inves de regressiva.)

r.

From: Giuseppe Cocco To: universidade nomade Subject: Re: [Universidade_nomade] Network, swarm, Microstructure blocos Rodrigo (e Barbara), nao leio muita ambiguidade nas referencias de BH aos "blocos". Sem contar a aplicacao do esquema polanyano de analise (os anos 1930) a situacao atual, ou seja a ideia que estamos sempre entre liberalismo anarquico e keynesianismo (ou seja entre neoliberalismo e neokeynesianismo), a referencia dele aos blocos eh bem coerente com a tomada de posicao dele pelo NAO (na Franca) no referendum do TCE (constituicao europeia). A vitoria do NAO foi – pelo contrario – a porteira aberta para o Sarkozy! Foi o Nao ao Bloco que – resocializando o mercado, como BH gosta – abriu o caminho para a recuperacao dos votos nacionalistas e xenofobos por parte da direita tradicional. Ja nisso podemos ver que nao ha ambiguidade que segure no que diz respeito as questoes da soberania e do nacionalismo: a multidao esta longe disso... abs, beppo


pós-nacionalismo Date: Tue, 4 Sep 2007 14:39:22 From: rodrigo nunes To: universidade_nomade@listas.rits.org.br Subject: Re: blocos

ciao beppo eu nao conheco os detalhes do debate do grupo de 'multitudes' na epoca do plebiscito, em que sei que o brian foi a voz dissonante, por isso nao tenho elementos para julgar aquela posicao em particular. mas me parece que dificilmente ele poria as coisas em termos de uma oposicao (e opcao) entre liberalismo desenfreado e neokeynesianismo. acho que a referencia ao polanyi no texto se justifica porque o registro da passagem eh descritivo, e nao normativo: ele nao estah subscrevendo nenhuma das posicoes (ele critica as outras, e tende a dar aos blocos o beneficio da duvida, nao soh aqui como em outros textos, como 'continental drift'), mas simplesmente descrevendo-as como alternativas que tem sido postas em pratica.

eu acho que o caso eh, como disse o foucault em uma entrevista, nao de dizer que tudo eh ruim, mas que tudo eh perigoso; e que ha, mesmo nas dinamicas que sao, num sentido geral, positivas (como eh o caso dos blocos), tanto tendencias como contratendencias que podem acabar levando a lugares que nao desejamos. principalmente se a dinamica dessas tendencias se dah 'de cima para baixo', como 'revolucoes pelo alto', ao inves de 'debaixo para cima'.

pessoalmente, eu penso que habitar essa ambiguidade de correlacoes de forca cujas resultantes ainda nao estao delineadas eh a condicao para atuar nas disputas que estao colocadas. sobre o sarkozy -- talvez as pesquisas qualitativas me desmintam, e as pessoas tenham votado numa coisa sem se dar conta que tambem votavam em outra; mas me parece que ele era justamente a alternativa que juntava politica social conservadora com politica economica liberalizante (e portanto, pro-europa; nao que ser pro-regionalizacao signifique necessariamente ser liberal, mas nesse caso eh). que, alias, eh a tendencia eleitoral predominante em toda a europa atualmente -- veja-se angela merkel e a guinada 'moralizante' do labour party, para nem falar do leste europeu, onde esse tem sido o 'bloco hegemonico' desde a chamada 'transicao'. no leste europeu, por sinal, a amalgama social-conservadorismo/liberalismo economico se utiliza, paradoxal mas muito eficientemente, do discurso nacionalista.

e esse tipo de politica eh, no fim das contas, nada mais que o mais extremo liberalismo, o que fica claro quando se olha do ponto de vista das politicas de migracao. embarcar num discurso xenofobo sobre 'esse imigrantes (extra-comunitarios) que vem aqui roubar os nossos empregos' eh a maneira de criar o consenso pelo minimo denominador comum e, ao mesmo tempo, garantir o funcionamento de economias cada vez mais dependentes do trabalho imigrante. eh o melhor de dois mundos: fazer de conta que se fecham as fronteiras -- o que eh obviamente impossivel do ponto de vista pratico -- e manter um setor imenso da maode-obra na ilegalidade, garantindo assim as melhores condicoes de exploracao.

um abraco, r.

encontro nacional dos

pontos de cultura

To: universidade_nomade From: Barbara Szaniecki Subject: ENXAMEANDO NA TEIA, encontro nacional dos Pontos de Cultura em Belo Horizonte 2007

Cheguei da TEIA, (http://www.teia2007.com.br/) o encontro nacional de Pontos de Cultura que rolou esta semana em Belo Horizonte. Fomos chamadas Caia e eu pra animar um 'conversê' sobre o tema "Enxame" que rolou aqui na lista. Lá fomos nós, mochilas nas costas pra entrar no clima... A Casa do Conde é um espaço bem interessante, onde mistura-se design com material reciclado e computadores aos borbotões. Low tech e Hi tech. Almoçamos, Caia tomou sua cervejinha, eu tomei meu suquinho, cada qual seu estilo. E fomos lá procurar onde é que diachos ia rolar o tal 'conversê'. Não havia lugar previsto. Tudo bem, nômade arma a tenda (e o barraco) em qualquer lugar merrmo. O Luiz da Papagallis (http://papagallis.com.br), decidiu 'vai ser aqui', bem debaixo de um lindo e enorme lustre estilo Versailles feito de uma boa centena de garrafas pet. Rapidamente apareceram rapazes e moças que arrumaram mesinhas, toalhas brancas de papel e canetas coloridas para que a galera pudesse rabiscar/registrar todo o processo que, no final, ficaria ali, visível aos olhos de todos. Nos explicaram a "tecnologia de facilitação da comunicação": Caia e eu iríamos ficar em mesas diferentes e, de vez em quando, no meio do 'conversê', os coordenadores/facilitadores iriam trocar algumas pessoas de mesa. Embora interessante como proposta, acho que houve a esse nível um pequeno curto-circuito, pois nossa proposta não era tanto aquela de falar 'sobre' o enxameamento mas a de enxamear junto, ou seja, pretendíamos de certo modo testar a nossa "tecnologia do enxame" (risos), mesmo sem saber a priori que tecnologia era essa... Universidade Nômade 41 GLOBAL


universidade nômade... ...Algumas pessoas foram se aproximando. Pra iniciar o papo, apresentamos rapidamente a Universidade Nômade espalhando pelas mesas revistas GLOBAL e cartazes com nosso manifesto fundador (rs) e começamos, alternadamente Caia e eu, a falar sobre o enxameamento que deu origem a Universidade Nômade com a sua preocupação de unir saberes de dentro e de fora da universidade, e pouco tempo mais tarde, em plena crise de 2005, enfrentar com a teoria e a práxis de uma radicalização democrática o discurso da mídia sobre a tal da 'corrupção'. Boa discussão. O inspirado discurso de Lula na abertura do evento no dia anterior ainda impregnava o local e as pessoas manifestaram simpatia e curiosidade pela proposta. Mas afinal, o que FAZ a universidade nômade, o que produz? Produzimos discurso encarnado na multidão. Caia apontou a importância da internet no nosso trabalho. Acho que por aqui fomos separadas pela 'tecnologia da facilitação" ;-) e passamos a 'animar' mesas diferentes ... ... Havia conosco uma figura marcante, uma senhora negra de sessenta e poucos anos, bonita e forte e, com ela, um filho (ou sobrinho ou neto, nao me lembro) adolescente, ambos de um Pontão de Cutura Digital do Recife que desenvolve a pedagogia Griô. Ela comentou sua dificuldade com o uso da internet e emendou sobre a pedagogia Griô desenvolvida no seu Pontão, apresentando o velho Griô como um historiador oral disseminador daquela cultura, um 'repassador' dos saberes da tradição para as geracões mais jovens. Questionei esse "saber repassado" dos mais velhos aos jovens pois, afinal, ela mesma acabara de dizer que estava praticamente aprendendo internet com a neta de 8 anos. Lúcia enfatizou a oralidade desse saber e discutimos em que medida o fato de ser oral ou escrito transforma o próprio saber. Rolaram falas interessantes sobre o fato da internet estar gerando novos saberes, em sua forma e em seu conteúdo. Nos mails, aparece mais a 'fala' do que a 'escrita', a forma oral prevalecendo e transformando a própria forma textual. Questionada sobre a 'tradição', Lúcia respondeu na lata que, para a academia, a tradição é estática pois deve 'fundamentada' segundo um fulano já morto, mas que a tradição é dinâmica na medida em que é discutida na comunidade. Em toda caso, a tradição é inventada! Engraçado perceber como Lúcia tinha desenvolvido uma visão apuradíssima da realidade da Academia através da criação da figura do "Professô Segundo...", equivalente ao "professô-doutô" introduzido aqui na lista pela Caia. Ficou tirando onda desse professô que, para fundamentar sua fala, deve fazer reverência aos mortos – segundo fulano, segundo beltrano – e que nem sabe direito o que fazer com o saber dele! Emendou dizendo que ela mesma agora está com um projeto-grana pra ensinar os "Professô Segundo" o que fazer com o saber deles (rs)... O papo foi rolando, outras pessoas foram se apresentando. Paulo: "Sou uma estatística: jovem, negro e sem universidade... mas sempre arrumo umas namoradas por lá... até um italiana (rs)". Rosalves, outro jovem negro, tímido, teve uma passagem pela universidade (anotava tuuuuuudo) mas não se encontrou, saiu fora e foi pra capoeira. Ambos de Belo Horizonte. Já a Vania é do Sul e pesquisa o quê? Griô. Outra senhora, a Ceiça, também era de um Ponto de Cultura, mas nao me lembro qual e de onde. O papo acabou ficando mais pra tradição do que pra inovação, mas sempre com alguma abertura de diálogo nascendo da ambiguidade de alguns conceitos. Nação por exemplo. O nacional-popular esteve presente nessa TEIA, não há menor dúvida de que ele pairava acima e abaixo das intenções do encontro, mas de que Nação estamos falando? Lúcia nos fala por exemplo do Maracatu-nação. Do Maracatu como célula de uma sociedade africana que não tem nada a ver com Nação Brasileira... Raiz E rizoma? ... Acabei ficando um pouco irrequieta por nao conseguir conversar mais com Paulo, Rosalves e Mateus sobre a possibilidade de 'pular a cerca' da universidade. Sobre como pular e como ficar. Pois, se estávamos todos mais ou menos de acordo com as críticas à Academia, minha percepção é que ela deve ser umas das possibilidades para os jovens como eles. E que, sem eles, não conseguiremos transformá-la: local do possível encontro dos saberes afro (e indígena) com os saberes eurocentrico-branco, das tradições dinâmicas com as tradições estáticas sem falar da inovaçao merrrmo, do Griô com o professô-doutô e, sobretudo, de superação de todas essas clausuras identitárias... Aí, a questão das cotas, o papel das bolsas, o desejo de radicalização democrática. Essas questões infelizmente não foram aprofundadas... No final, já enxameando, Lúcia disse: 'gostei dessa coisa de nomadismo aí". Ufa! E eu: 'tambem gostei dessa tradição-inovação". Ponto pra Universidade Nômade e pros Pontos de Cultura! Caia, agora é contigo! Abs, Barbara

De que Nação estamos falando?

Maracatú Nação

Griô tradição, inovação

From: Fernando Santoro Subject: Re: [Universidade_nomade] ENXAMEANDO NA TEIA, encontro nacional dos Pontos de Cultura em BH 2007 Barbara, vc pode me passar algum contato da Lúcia. É que eu sou grande admirador da música e da tradição griô (ou griot, como escrevem em francês do Mali). E sou um estudioso das tradições orais ancestrais (no Ocidente europeu, isto se chama "homerista", porque Homero é o fim da linha (ou começo) da tradição escrita européia. Homero mesmo (ou Homeros, no plural o que é mais acertado) era analfabeto, claro. O alfabeto foi inventado pelos gregos por volta do séc.VII, adaptando a escrita consonantal dos povos semitas. Inovaram acrescentando as vogais, justamente para poder grafar a musicalidade de Homero; e Pisístrato, um governante de Atenas, organizou a primeira versão escrita dos poemas - depois, todo mundo sabe no que deu... abçs, Maguila.

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enxameando na Teia... From: Caia Fittipaldi To: universidade nomade Sent: Sunday, November 11, 2007 9:47 PM Subject: [Universidade_nomade] EU SEI QUE É COMIGO! Mas... só poderei escrever, na 3ª feira [seguem alguns comentários periféricos] Re: ENXAMEANDO NA TEIA, encontro nacional dos Pontos de Cultura em BH 2007 Vc tem toda a razão, Barbara! Eu sei que é comigo. A parte da mochila foi linda, mesmo! Há anos eu não viajava de mochila e tênis, totalmente soltinha. E, sim, temos mesmo de escrever esse 'relatório' -- que é importante instrumento de enxameamento. O que nós fizemos lá foi, sob vários aspectos, diferente do que fez lá, p. ex., o Peter Pelbart (à noitinha, naquele dia, eu assisti a fala dele, lá, numa mesa com um rapper super bonitón, de Goiás -- eu acho). Os rappers têm a vantagem de serem sempre beligerantes e assertivos. Gosto (muito) da pegada deles. E tb gostei da pegada do Peter (com todo o respeito). Sim. O nacional-desenvolvimentismo estava lá, em todos os cantos (menos no cacique Raoni -- que ouvi lá, tb, à tardinha -- e que incorporou o tacape ao batoque e tá-que-tá, de faca no dente, e não quer saber de papo de branco). Foi engraçado, na minha mesa, pq lá estavam duas mães de santo - D. Lúcia e Ceiçaxé com as quais vc tb conversô). As duas botaram o olho em mim e concluíram que "Universidade Nômade" seria um ramo do candomblé, sob o poder do machado de Xangô. Isso acontece sempre, comigo, pq o meu xangô é TOTALMENTE visível prá quem saiba ver estas coisas. As duas só faltô me pedirem a bênçã. Foi um custo eu convencer as duas que o meu Xangô é TOTALMENTE IMANENTE e que a UN nada tem a ver com o candomblé. Que eu sou Xangô porque eu luto, não que eu lute porque seja Xangô. Não, não! É exatamente o contrário. É o making do meu Xangô. Não é o rising, entendeu? Depois de eu explicar às duas, à parte, rapidinho, pra não complicar o conversê geral, D. Lucia concluiu, griô-sábia: "Xangô faz o que quer. Pode fazer "universidade nômade", como faz o que quiser. Caô, minha filha, caô." Foi bonito. O Cocco não vai acreditar, mas D. Lucia adivinhou que, dias antes, em SP, eu dera comida ao meu santo.

oXangô making imanente

Depois, falando do trabalho imaterial, eu disse "o professor Giuseppe Cocco...". E uma mocinha lá, de um Ponto de Cultura de Pelotas, no RS, anotou, diligente: "Professor José Pecoco". (Depois, acertei todos os nomes). Vou escrever direito sobre o resto, mas já fica aqui resolvido esse problema da imanência versus a transcendência -- que rola, sim, também, na multidão. São encontros. Enxamear é enxamear o semelhante ou o contíguo, nunca o igual e o mesmo nem o totalmente diferente, o antípoda. Tendo a crer que, prôs totalmente diferentes, o instrumento é o tacape do cacique Raoni. Vamvê. A luta continua. __________________________________________ O meu único problema é que, juntando RJ e BH, eu passei quase uma semana por aí, na vida mansa (até cisne rolô na minha vida, nestes dias, sô! Quatro! Dois branquinhos, dois pretinhos, prá lá prá cá, num laguinho. Contando, ninguém acredita!). Agora, tenho UMA TONELADA de trabalho-grana pra entregar até 3ª feira. Hoje, ainda não vou poder escrever mais -- e tô trabalhando desde as 9h da manhã. Amanhã tenho de acabar tudo e, pra eu escrever coisa-com-coisa, dependerá de como estarei qdo. eu acabar e mandar tudo. Mas de 3ª não passa! Promessa de tarefeira do PCdoB. Beijos enxameantes. 8-) Caia Universidade Nômade 43 GLOBAL


A CIDADE DOS CATADORES DE PAPEL Rodolfo Fonseca “Entre carros e pedestres” nos espaços de Belo Horizonte Um paredão de edifícios quadricularmente envidraçados percorre de lado a lado a reta avenida, formando um corredor sufocante, atravessado por vários afluentes intercessores que, de tempos em tempos, interrompem o fluxo de corpos em movimento nos dois sentidos paralelos e contrários da correnteza. Este é um espaço social consagrado para o movimento, e só há dois modos de percorrê-lo em sua construção espacial. Pessoas, carros, carros, pessoas, essa é a regra, cumprida ou descumprida, cada um tem seu lugar. Esse é um fluxo constante, se pararmos em seu movimento parecemos ver as mesmas pessoas, os mesmos carros, a cada segundo, o mesmo instante de movimento. Dentre as formas básicas de percorrer esse espaço, surge o que parece a negação da cidade moderna. Um veículo feito todo em madeira que atinge seus 2 metros de altura e 1 de largura, apoiado sobre duas rodas paralelas e sustentando uma gaiola armada, a partir da qual, logo abaixo, estende-se “um puxador”, uma madeira que envolve o entorno do homem que o puxa, empurrando todo o peso do “lixo”. Na traseira do carrinho uma placa de carro, três letras, quatro números, convidando à identificação da infração; e na frente, um logotipo elíptico da Ford se destaca, fazendo uma gozação do atributo de automóvel. O carrinho de catador atravessa o cruzamento entre duas avenidas na contramão e corre em direção ao canteiro central, ao mesmo tempo em que outros dois, da mesma espécie, fazem o mesmo movimento, para depois seguirem sem perder o passo em fila indiana junto ao canteiro da avenida, espremendo-se entre o ritmo de movimento das duas vias de direção contrária. Observando tudo isso a partir do movimento de pedestres da calçada, mesmo com o passo apressado, temse dificuldade em acompanhá-los. Apesar de os carrinhos levarem cerca de 300 a 400 kilos de “lixo”, a caminhada de seus condutores parecia ter GLOBAL 44 Universidade Nômade

um ritmo pouco humano. Ao longo da trajetória que desenvolviam ocupam pela sua proporção e largura quase toda a faixa principal da pista. Num dado momento, com o semáforo fechado para os carros, dois dos carrinhos em fila atravessam do centro da avenida para o meio-fio junto à calçada e param no que seria um dos pontos de recolhimento de material. O outro, que permanece na avenida, sobe no canteiro central e fica parado, esperando calmamente o semáforo de pedestres indicar passagem para atravessar na faixa e subir o asfalto na contramão de uma rua em esquina. Afinal, carrinhos de catador de papel no espaço da rua são como carros motorizados, ou são pedestres puxando um carrinho no meio da rua? O movimento e a trajetória dos catadores de papel ou dos carrinhos de catador de papel na cidade têm uma forma própria de atuação e apropriação do espaço da rua, diferentemente de outros atores com espaços de movimento delimitados pela ordem espacial fundamentada na divisão entre calçada e asfalto, ou seja: pedestres e automóveis. Se analisarmos a apropriação do espaço da rua pelo deslocamento dos catadores ou dos carrinhos de catador de papel de um ponto de coleta do material a outro, notamos que seu movimento, ora na calçada, ora na avenida, interfere no caminho de tráfego de carros e de pedestres, oscilando o tempo todo entre o papel de automóvel e o papel de pedestre estabelecidos pelo sistema espacial, sem se assumirem como qualquer dos dois. Como automóvel, adequando-se de certo modo ao ritmo do trânsito de carros, trafegando na avenida até mesmo pela pista de maior velocidade; e como pedestre, traçando seu próprio caminho, sem mãos, contramãos, nem conversões proibidas, ou utilizando os espaços e momentos delimitados na rua para os pedestres, como a calçada, a faixa e o semáforo de pedestres. Na verdade, ambos, o carrinho e o catador, ao mesmo tempo que não podem ser pedestres, também não

são capazes de serem automóveis, exatamente por não serem nenhum dos dois. Mas, nos momentos adequados, utilizam-se das formas de uso e atribuição do espaço de ambos. Uma negociação ou competição pelo espaço de movimento da cidade acontece na avenida entre catadores e automóveis, quando os primeiros confrontam-se com um certo direito de passagem dos outros, um movimento relativamente organizado e previsível das regras de tráfego. Isso às vezes gera enfrentamentos e conflitos entre o papel estabelecido dos automóveis e o papel articulado dos carrinhos de catador, uma verdadeira competição pelo espaço urbano, negociada entre esses dois atores sociais, sem que isto signifique uma relação pacífica entre ambos ou em que não ocorram colisões ou acidentes de tráfego. Os catadores ou os carrinhos de catador esprememse em passo acelerado entre o movimento dos automóveis e o canteiro central da avenida; já os automóveis desviam-se dos carrinhos de catador cedendo espaço de movimento aos catadores. Por outro lado, também acontece outra negociação ou competição quando os catadores ou os carrinhos de catador utilizam-se das calçadas, por exemplo, para cortarem caminho de uma rua a outra, evitando a contramão. Nesse caso, são os pedestres que têm na maior parte das vezes que desviar do carrinho de catador, um veículo desproporcional até mesmo para as calçadas mais largas, e incompatível com o espaço de movimento dos pedestres. Em todo caso, o carrinho de catador não é apenas uma forma de transporte do material coletado movido a tração humana; é um meio de locomoção, do material e do catador, o que retira o atributo de pedestre e impossibilita o de automóvel. Ora é o catador que leva o carrinho, ora é o carrinho que leva o catador ao longo da trajetória, num só corpo indissociável dentro do fluxo de movimento, num sincronismo adequado ao ritmo exigido pela avenida.


Pontos de coleta de papel: “territórios em circuitos” nos lugares da rua A determinação de um lugar da cidade como ponto de coleta de material baseia-se na apropriação e delimitação de um local da rua por relações interpessoais, articuladas tanto para a conquista quanto para a manutenção do ponto, que têm como base a fixação de territórios “pessoais” deste ou daquele catador em relação a outro catador. Tais pontos de coleta são geralmente estabelecidos na porta de estabelecimentos comerciais, edifícios residenciais ou comerciais que colocam seu eventual “lixo”, normalmente em horários fixos, ou mesmo combinados com o catador que “detém aquele ponto”. Um ponto de coleta de material delimita ou marca uma área na calçada, constituída por uma certa relação de compromisso entre o catador e o fornecedor do ponto e, ao mesmo tempo, negociada em territórios com os demais catadores por relações de delimitação ou disputa pela posse dos pontos. Trata-se da fixação de lugares da rua baseados em relações de posse estritamente pessoais, deste ou daquele catador, ou entre o grupo de catadores, ao mesmo tempo que são espaços que convivem em interação com o caráter público, transitório e impessoal do modo de vida urbano. A importância da demarcação desses territórios pode ser percebida na forma como tais delimitações são tomadas como referências fundamentais no direcionamento do catador em seu deslocamento na rua, totalmente marcado e pontuado pela localização de seus pontos de recolhimento do material e o horário definido de coleta para cada um desses. Dessa forma, o catador vai guiando a trajetória do carrinho ao longo dos pontos “possuídos”, constituindo um circuito[3] que integra a territorialidade de seus pontos de coleta e contrapõe-se às demarcações de outros catadores nas ruas. Os catadores de papel criam assim uma outra espacialidade urbana, bem como um outro mapa urbano da cidade a partir das relações próprias que estabelecem entre os elementos móveis e fixos do sistema espacial, criando novos espaços, assim como novos lugares na cidade.

A cidade dos catadores de papel Como diz Michel de Certeau,“...o ato de caminhar na cidade é um processo de apropriação da ordem espacial construída pelo pedestre, uma realização espacial do lugar... Se a ordem espacial organiza um conjunto de possibilidades e proibições... o caminhante, pedestre, usuário do espaço, trata de atualizá-las, tornando efetivas algumas delas e abandonando outras ao vazio, ou ainda deslocando e inventando outras possibilidades, criando atalhos e desvios... uma verdadeira retórica do habitante na apropriação da ordem espacial da cidade”. Dessa maneira, uma cidade dos catadores de papel tem nos espaços da cidade a articulação de uma outra espacialidade que une a divisão entre calçada e avenida numa coisa só, apropriandose das formas de uso e atribuição do espaço tanto de pedestres quanto de automóveis, mas sem se tornar nenhum dos dois, com seu próprio meio de locomoção, que leva tanto o carrinho quanto o catador.

Já os lugares de uma cidade dos catadores são marcados por caminhos que levam diretamente aos pontos de coleta de material, sem mãos, contramãos, e poucos cruzamentos, com territórios articulados em circuitos de posse e disputa entre os catadores pelo “lixo” urbano. Os catadores de papel com suas formas próprias de uso e leitura do espaço, bem como de apropriação de lugares da cidade, e de restos e partes do “lixo” urbano, dotam de outros elementos de composição, e outras espacialidades uma cidade, assim, uma cidade dos catadores de papel só pode ser lida, avaliada e modificada, a partir, e por dentro de sua própria perspectiva. [Este artigo é uma versão reduzida do texto publicado na Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais vol. 8, n. 2, maio de 2007.]

Adriano Melhem, da série Fantasia, de Paulo Innocêncio, 19 de maio de 1998. Trânsitos 45 GLOBAL


Alexandre Vogler, da sĂŠrie Fantasia, de Paulo InnocĂŞncio, 19 de maio de 1998.


Ana Paula Cardoso, da série Fantasia, de Paulo Innocêncio, 19 de maio de 1998.

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Ronald Duarte, da sĂŠrie Fantasia, de Paulo InnocĂŞncio, 19 de maio de 1998.




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